26 de fev. de 2010

Deficiência

Um homem atrás de emprego. Toda segunda-feira enfrenta filas. Envia currículos pela internet. Conversa com amigos que o indicam para seus chefes. Na segunda tudo se renova, até aquela esperança perdida na sexta, o limbo no sábado e a ansiedade dos classificados no domingo.
Ele vive a segunda-feira em euforia, ao contrário de muitos que já entram no domingo à noite em depressão. Corre de uma empresa a outra, vasculha agências de emprego, acredita em sua capacidade e sua larga experiência em seu ramo de trabalho. Se ele fosse dono de uma empresa, com certeza contrataria um funcionário com o perfil dele. É um lutador, com uma resistência para vários rounds. Na segunda, nem o pastor evangélico mais fervoroso teria a fé que ele possui para conseguir uma colocação no mercado. Fez tudo o que estava a seu alcance. Dorme com a consciência do dever cumprido. Agora, vai.
A terça-feira chega. Acorda cedo, com a mesma tenaz do dia anterior. Celular com a bateria totalmente carregada, telefone fixo sem fio acompanhando-o qual cão de guarda. O negócio agora é esperar. Checa seu e mail profissional de hora em hora. Vem-lhe a mente sua última entrevista: “O senhor possui todas as qualificações que necessitamos. Acredito que em uma semana estaremos entrando em contato a fim de lhe contratar”. Uma semana... fecha nessa terça. Havia se dado muito bem na entrevista: boa apresentação, fala segura e convicta, olhos nos olhos, tranqüilidade, quesitos básicos de um verdadeiro líder. Seus esforços seriam recompensados. O traje para apresentação ao primeiro dia de trabalho, jazia no guarda-roupa, em total prontidão. A noite chegara e nada. Nenhuma ligação perdida, fixo mudo durante todo o dia. Amigos não atenderam e os que o fizeram só tinham respostas negativas. Mas nem tudo estava perdido. Ainda haveria uma quarta-feira pela frente.
E a manhã de quarta aparece com uma surpresa: sete e meia da manhã uma ligação. Não era sobre emprego. Era sobre um negócio mirabolante em que o investimento inicial seria uma bagatela em comparação ao que poderia se ganhar. Coisas do marketing de rede. O homem, no entanto, era escravo de um círculo vicioso. Gastando, suas economias diminuiriam e não era uma situação em que ele poderia correr risco. A frase “grandes conquistas dependem de grandes sacrifícios” não tinha, naquele momento, nenhum sentido para ele. Com as economias quase findas, ele já olhava para sua Fender Texana com olhar lânguido. Teria de vendê-la, mais cedo ou mais tarde. A quarta fechara vazia. E vazia ficara também sua esperança.
Quinta-feira. O dia da depressão de todo caçador de empregos. Afasia. Atirado em frente à tevê, flácido, desesperançado, impotente, assiste com ar desligado os programas que lhe veem à frente, lata de cerveja na mão, Chet Baker no ouvido, em total sinal de desolação. Barba por fazer, banho não tomado, nada, nem fome tinha. O que tinha sim era uma larga experiência na função, um currículo gordo e muita vontade de vencer trabalhando, como manda a cartilha neoburguesa de todo culto capitalista que se preze.
Sexta-feira. Ideação suicida. Não agüentaria mais uma semana de frustração. Estava, novamente, fora do mercado competitivo. O niilismo a que se entregava toda sexta só era superado pelo hedonismo da festa noturna, sempre com os mesmos amigos e amigas. Umas fáceis, outras, paixões e uma... inacessível.
Sábado é dia de jogo. Primeiro com os amigos, depois a tevê. Pela manhã fora a uma palestra sobre “Como Conquistar o Emprego de seus Sonhos”. Pagara uma grana federal e com certeza realizara o sonho do palestrante, ele e outros necessitados. Mas, como em toda palestra motivacional, esperanças renovadas. Jogou seu futebol, assistiu o do seu time, um filme e foi encontrar o domingo dormindo cedo. Tudo haveria de ser diferente, desta vez.
O domingo o impele aos classificados. Leitura nervosa, porém lenta e cautelosa. Cada círculo com a caneta vermelha, representava uma possível re-territorialização no mundo do trabalho e da dignidade. Muitos círculos, maior probabilidade de sucesso. Não era nem sonho, era necessidade mesmo. O círculo, símbolo da perfeição. Agora vai.
Novamente, uma segunda agitada. Filas, currículos, telefonemas. Na sua caminhada do final de tarde, encontrou-se casualmente com um velho amigo que, curiosamente, trabalhava na mesma empresa onde fizera sua última entrevista. Conversa vai e vem, acaba por descobrir que o cargo a qual se candidatara foi preenchido por um jovem de 25 anos que perdera metade da perna esquerda num acidente de carro. O homem, tristemente, lembrou-se do anúncio e suas palavras finais: “pessoas com deficiência serão muito bem vindas”. Num insight, ele descobrira também que tinha uma deficiência física, ditada por um mercado hiperativo e bipolar: tinha mais de quarenta anos. O único detalhe era que o governo não via isso como uma deficiência. Não existia um programa governamental para o “último emprego”, só para o primeiro. Essa sua deficiência gerava um déficit apenas para ele. Como gostaria de ter sofrido um acidente. A platina em algum membro seria detectada pelo sensor de metais de um banco, mas ao menos ele teria um emprego. Esperança? Humpf.

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