30 de nov. de 2011

Sombras... À margem de...

Peter Pan achou Wendy tentando capturar sua sombra. O fenômeno físico da forma pela simples "obstaculação" da fonte luminosa engendra um universo metafórico de implicações psicológicas existenciais. Esta aiônica é uma homenagem sincera àqueles que viveram à sombra das celebridades, sejam amigos, patrões, pais, ou mesmo donos (imagine o dono do Rim-tim-tim, ou mesmo do Marley). Que fizeram do fenômeno físico, um fenômeno psíquico fantasmagórico, bruxuleante, que os perseguiu, durante toda a vida.
O foco luminoso que serve de exemplo para nossa análise é a irmã de Wolfgang Amadeus Mozart. Maria Anna Mozart, cinco anos mais velha que o irmão. Aos sete, tocava teclado tão bem quanto o seria a celebridade emergente. Era sim, um prodígio.
O que nos faz simplesmente sermos sombra de alguém popular, famoso, notório, com talento para algo que outros apenas sonham em ter? Será que próximos, não gostaríamos de "tirar casquinhas" desta fama toda? Mas e quando sabemos que somos tão talentosos quanto os famosos? Pensemos melhor sobre isto.
Um número significativo de mulheres sempre me disse que todo músico fica sexy quando se apresenta. Não importa sua beleza ou sua compleição física. Ed Motta que o diga. E o Tim que o dissesse. Tornam-se evidência, e evidência é, em última instância, poder. Carisma? Pode ser, ainda que esta palavra não esteja muito bem explicada. Os especialistas usam o termo empatia. Mas empatia até minha professora de primário tinha, mas sei que, pobrezinha, não tem seu nome hoje em alguma Escola. Gessy, o nome dela. Simples e perfumada como o sabonete.
Famosos são carismáticos porque têm talento, ou são talentosos porque têm carisma. Ao invés de ficarmos elucubrando sobre ovos e galinhas, simplesmente admitamos que talento é talento e carisma é carisma. Mesmo que os dois coexistam, não significa que a pessoa será famosa. Beethoven tinha uma genialidade e um talento muitíssimo acima de sua truculência. Se fosse outro mané surdo, não continuaria atuando como músico, pois seria sombra de sua própria sombra.
Anna Maria era o ídolo da infância de Wolfgang. Ele sonhava em ser como ela ao teclado. Foi. E foi compositor também. Anna, desejava muito ser compositora também, mas como seu pai um dia lhe dissera: "algumas coisas estão muito além dos homens comuns, quanto mais das mulheres". Mozart, o menino sapeca, é um ícone da música mundial. Anna, quando muito, era sua irmã. Famosa por suas composições? Não. Nada ficou para posteridade. Seriam necessárias muitas outras Marias, como a Curie, para que as mulheres pudessem adentrar no mundo masculino. Mas parece que o da composição musical ainda conserva o feminino à sombra. Sombra esta honrosa, pois são consideradas musas dos compositores. Mas até crianças que descobrem que o Papai Noel é na realidade, o Papai Ma Noel, sabem que musa é mitologia grega. Compositoras populares estão, felizmente, mostrando que a composição é assexuada, e... "amusada".
O que faz com que vivamos à sombra? Wolfgang insistia para que Anna desobedecesse ao pai. Ele mesmo fez muito isto durante a vida toda. Mas não. Anna era obediente. Na adolescência já não acompanhava pai e irmão nas turnês que o tornaram famoso e respeitado. Preparava-se para casar. Seguir o status quo social europeu do final do século XVIII. Anna escolheu ser assim? Sim e não. Escolheu seguir o manual à risca, talvez porque não queria macular a fama do pai, nem do irmão. Mas condições tinha e tinha muito. A Superinteressante exalta a genética dela, dos Mozart, mas afirma que o ambiente influenciou. Então Anna simplesmente decidiu ser da época dela. Quem sabe o que a história poderia contar de uma maluca compositora em pleno século XVIII?
Sombras são o contraponto da luz quando algo se antepõe à fonte geradora. Mozart seria menos conhecido se a irmã desenvolvesse sua genialidade? Não creio. Acho até que formariam a primeira dupla caipira da história: Anni & Wolf, mais ou menos como Sandy & Júnior.
Anna foi sombra. Mas só foi sombra porque no início foi luz. A vida a sombreou e ela decidiu por cobrir-se de negro, ficando na penumbra da história. Quantas sombras estão aí, dando a luz à celebridades? Quantas Annas estão construindo Wolfgangs e não podem ir à luz só porque não possuem uma beleza televisiva? Quantas eminências pardas que a história adoradora de indivíduos criou para que os famosos tenham seu nome na eternidade? Estou, no exato momento que escrevo esta aiônica, ouvindo Mozart. O Wolfgang. Mas desejava muito ouvir também sua irmã. Para comparar? Não. Para trazer à luz. Serei como Peter Pan. Capturarei minha própria sombra para que não ofusque a luz de ninguém.

21 de nov. de 2011

Tragédia - Notícia = Estatística

Melissa é repórter. Matinal. Sua rotina laboral inicia mais ou menos no mesmo horário que muitos chegam da balada. Banho, maquiagem, café rápido, carro, emissora. Seu trabalho, após cinco anos de luta para conquistar um lugar ao sol no canal aberto de maior assistência no país, tornara-se mecânico. Ou cobria algum evento em uma cidade próxima à capital, ou anunciava algo novo. Por vezes, arriscava um palpite sobre o tempo. Reclamar disto? Nunca. Melissa chegara onde muitas sonhavam chegar.
Repórter é jornalista? Não. Repórter carrega o piano. É itinerante. Vai onde a notícia está. Tira da manga um questionário rápido de um fato inusitado ao qual foi chamada para reportar, gerar notícia. Repórter é a história, viva. Dos milhões de micro-eventos durante as vinte e quatro horas do dia, é o repórter quem imortaliza determinado evento. Mas, por ironia do destino amplamente planejado do mundo televisivo, não é Melissa quem escolhe qual evento ganhará a alcunha de imortal-salvo-em-hard disk. São os editores, redatores e chefes. Quais monges escolásticos, eles decidem o que é doutrina e o que é heresia.
A tragédia. Numa quinta-feira, Melissa acordara depois do horário. Balada? No meio da semana? Não. Melissa era centrada, e seu trabalho era tudo. Mas não era de ferro. Acordou de sobressalto, arrumou-se como pôde e saiu em desvario, a fim de não se atrasar. Esquecera os óculos, que formavam a imagem simpática da morena baixinha, bonitinha e nerd, elogiada por quase toda a rua (menos a Kátia, sua arqui-inimiga, que também sonhava em ser repórter). Dona Mância, sua avó, era um orgulho só. A neta era repórter. Mância fizera de tudo para que Melissa chegasse a este posto. Costurava, limpava casas, vendia potes de conserva. Pagou o curso de Melissa, viu-a se tornar mulher. E de sucesso. Por toda esta intensidade, Mância, a Mãe Mância, não iria deixar que sua neta querida perdesse a identidade. Quem não tinha nenhuma identidade era Regina, que aos quarenta e oito anos de idade, ainda chegava da balada. Errara com a filha. Não erraria com a neta.
No mesmo impulso de Melissa, Mância corre em direção ao ônibus para encontrar Melissa no trabalho e entregar o precioso óculos. Sobe no ônibus, agarra-se mal ao corrimão, e o motorista, apressado, arranca. Ela cai no asfalto, bate a cabeça. Desacordada. O cobrador foge, desesperado. Pessoas acorrem e chamam a polícia. Quinze minutos a polícia aparece e dois minutos depois, a ambulância. Tarde, muito tarde. Melissa dá-se conta que esquecera os óculos. Neste mesmo momento, sua chefe a chama para cobrir um acidente na zona norte. Uma senhora caíra do ônibus e morrera esperando socorro. O primeiro grande furo de reportagem de Melissa. Deixa o pensamento sobre o óculos de lado, e corre com o câmera man para o local. Chega arfando e vê um corpo do que parece uma senhora de idade coberta por uma lona. Policiais, perícia, trânsito caótico, fiscais de trânsito berrando apitos... Melissa vai na fonte: a polícia. Não dizem muita coisa. Com seu faro, vai à procura de elementos para criar a notícia. Aprendera sensibilidade e perspicácia com a avó, que era mãe ao mesmo tempo. Procurou documentos, algo importante... Olhou para a mão esquerda da mulher, que jazia para fora da lona: um óculos. Igual ao dela. Era o dela. Reconhecera pela marca que fizera por questão de segurança. Ela tinha um TOC conveniente, de marcar tudo o que era seu. Se o óculos era dela... aquele corpo deitado, envolto em sangue.. Mância. Mentora. Mãe. Era ela. Melissa engole o choro. Contém-se. Aprendera a arte da imparcialidade. Sem o óculos dá a melhor reportagem de sua vida. A gravação termina, ela cai ali mesmo, esvaída em choro copioso. A tragédia. Sua avó se fora. Ela era sua força, seu esteio.
A notícia. Melissa volta à emissora. Vai direto a uma tevê. Espera ver sua reportagem passando na telinha. Não era por questão profissional. A imparcialidade é diretamente proporcional ao distanciamento que temos com determinado evento. Chorando, espera ver-se reportando o acidente com a avó. Ninguém na emissora sabia que aquela, era dona Mância, que no horário de almoço, trazia doces para Melissa e seus colegas. Aquela notícia era sim, uma homenagem àquela que dera seu sangue para que Melissa chegasse onde chegou. E que no último momento de sua vida entregaria os óculos da neta. Mância seria imortal. Todos lembrariam-se dela e da fibra de uma neta que reportara o acidente da própria vó.
A estatistica. A reportagem não veio. Em lugar dela, o furo era de mais um político pego em flagrante ato de corrupção, desviando alguns poucos milhões do erário público e que, por questões de ética e amor à pátria, desviara bem menos do que poderia. Sobre isto, a emissora criara uma novelinha que durou o programa de notícias inteiro. Ao final do programa, o anúncio de um acidente trágico. Apenas anúncio, mais nada. Um político corrupto com noções de ética amoral era mais importante que sua avó. A última frase ecoou na cabeça de Melissa: "Com esta morte só neste ano são mais de 1200 mortes por atropelamento. Vinte por cento a mais do que no ano passado". Mância tornara-se um número estatístico. Mais um. Melissa, num momento de ira incontida, falara a chefe, com sorriso amarelo que, se sua avó tivesse se candidatado a vereadora, ganharia fácil. Seria notícia, não estatística.
O que são planos cartesianos? Localização de coordenadas. Todos aprendem isto no ensino médio. A matemática. Cálculo. A mecânica do cálculo. O que poucos se dão conta é que os pontos que constituirão os fatores de cálculo são escolhidos, e estas escolhas estão atreladas à forças múltiplas de intensidades variadas. Forças humanas, demasiadamente humanas... egóicas.

Esta crônica é uma homenagem a todas as tragédias pessoais que no final, viraram estatística.