29 de abr. de 2010

Dualismos de Recorrência

O professor e escritor Donaldo Schüller, a quem presto homenagem neste momento, deu, certa vez, uma aula maravilhosa sobre o que é o mito: “Eu vejo a rosa, mas não a entendo; não sei de onde ela vem, e qual o propósito dela estar ali. Então eu crio uma história de como ela apareceu e qual o sentido dela existir. Criei o mito da rosa”. Os mitos são gerados pelas palavras e palavras que geram mitos acabam se tornando elas mesmas, o próprio mito. É o que acontece com o dualismo direita e esquerda na política.
Peço perdão aos meus leitores e seguidores, mas hoje, nesta crônica darei aula de OSPB. Ou como deveria ser uma aula de organização social e política brasileira. Gostaria de desconstruir estes termos duais, que não são nem de longe, contrários entre si. Afinal, este é um ano de eleição, e se ouvirão por todo o país os referidos termos.
Comecemos pelas palavras e a etimologia moral-religiosa que elas carregam. “Não veja a tua esquerda o que faz a tua direita”. Eufemismo. Claro que, levado ao pé da letra, subjuga a esquerda à superioridade da direita. Sinistro. Esta é a palavra para “esquerdo” no italiano. Destro, adestrar; tornar direito. E aí temos a mão certa, a direita. Os canhotos são sinistros. Precisam de tudo diferente. Os destros são direitos. O curso de direito, para se aprender como se é direito (ou disciplinado) aos olhos do poder. Então, no dualismo bem-mal, a esquerda é a que sofre o pênalti. Ainda que isto não seja mais palavra de ordem na atualidade, ainda se usa implicitamente nos discursos políticos. Minha professora de primeira série batia na minha mão quando eu pegava o lápis com a esquerda. Mas devo agradecer a ela. Graças a isto, sou ambidestro. Afinal, sou músico e músico não pode ter essas frescuras de destro e canhoto. Uso as duas mãos para sobreviver.
Direita e esquerda na política são usadas recentemente. Uma coisa do início do século XX. Como contraponto ao capitalismo industrial e financeiro, predador que fazia muitas vítimas, surgiu o socialismo científico como chamado na época. Ser socialista num mundo de lucros e acumulação de capital não era, realmente, uma coisa direita. Pensar que os seres humanos poderiam viver muito bem sem classes sociais era um disparate. Então, esse disparate fora visto como esquerda. Algo sinistro. Bem, na Rússia, esse sinistro virou situação. Tomou as rédeas, ainda que seus líderes não seguissem a contento toda cartilha dos seus criadores. Naturalmente, criou-se o dualismo direita-esquerda para designar capitalismo-socialismo.
Ainda que não houvesse uma real melhora no povo russo, algumas mudanças tornaram-se visíveis e eram usadas como propaganda pelos partidos socialistas mundo afora. Bem, a União Soviética foi a única que não se prejudicou com a crise de 1929. O welfare state de Roosevelt me pareceu ser uma “liberdade poética” de práticas socialistas dentro do mundo capitalista. O Estado retomando as rédeas da economia e criando estratégias para evitar uma convulsão social. Não muito diferente do neoliberalismo samba-tango-salsa atual. Na década de 1950, no pós-guerra, com o mundo dividido, é que esse dualismo atingiu o clímax. E aí que começou a caça às bruxas.
Confunde-se muito direita com situação e esquerda com oposição. Situação e oposição sempre existiram, esquerda e direita, na acepção política dos termos é que não existem mais, ao meu ver é claro. Os partidos que ainda conservam uma atitude bolchevique têm uma representatividade pouco significativa. E não são contraponto nem para eles mesmos. O socialismo soviético ruiu muito mais pelos seus vetores internos do que necessariamente pela sua competição externa com o capitalismo. Fato que a Rússia ainda é uma potência bélica que mete medo no tio Sam. E o pior: virou uma das maiores vendedoras de armas para o mundo dos poderosos que governam paralelamente: o tráfico e o fundamentalismo religioso. O PT autodenominou-se esquerda quando surgiu no fim da década de 1970. Alguns líderes postavam-se como seguidores de Lênin, Trotski ou Mao. Camisetas do Guevara era um aviso: sou de esquerda. Hoje, é cult aquele rosto do Che chapadão olhando pro vazio. Perdeu a significação. Foi o PT virar situação logo depois das torres gêmeas caírem, que já tratou de memorizar a cartilha neoliberal. Mas sem perder o ritmo latino.
Não há esquerda, ao menos no significado dado no dualismo da Guerra Fria. Há sim, contrapontos, como na música, e esses contrapontos, habitam todos o mesmo território, constituem a mesma harmonia de uma melodia dominante, a do mercado global, numa era de superprodução. Quando algum político vier com essa fórmula pronta dualista de bem e mal, certo e errado para direita e esquerda, não caia nesse papo. É que provavelmente ele ainda não se atualizou. Quem sabe até, para não ser injusto, ele tenha criado um contraponto atonal para a situação vigente. De resto, o discurso será sempre o mesmo: alimentação, saúde, habitação e educação com soluções mirabolantes e nomes de pessoas, não programas de governo. Já que temos que votar, que o façamos com a consciência de que o mundo é outro, sem dualismos de direita e esquerda. Sem mitos nas urnas.

27 de abr. de 2010

Alice no País das Maravilhas

Lewis Caroll. Uma inocente história infantil. Historinha difícil. Um mundo de maravilhas com uma maravilhosa rainha que manda cortar cabeças. O romantismo do final do século XIX revisitado pelo vandalismo das execuções medievais. Claro que, como toda aventura romântica e romanesca, alguém necessariamente precisa encarnar o mal, pois o bem e o heroísmo só existem em função dele.
Assim como Édipo, uma história que leva a inúmeras interpretações e viagens mentais. Um mundo de fantasias cujo portal é a toca do coelho. Ali, naquele eterno aión, o eterno tempo do “logo depois”, deixa-se a realidade para dirigir-se ao mundo da fantasia. Dentro do mundo da fantasia, questionamo-nos se não havíamos vivido a fantasia no mundo anterior. É como ficar rico de uma hora pra outra: a época que se era pobre foi apenas um sonho ruim.
Uma menina curiosa. Força dominante a curiosidade do homo sapiens. Após perdermos o medo, graças ao uso do fogo, das ferramentas, do Oráculo de Delfos e do notebook, a curiosidade passou a dominar os corações. Alice poderia muito bem não ter entrado onde o coelho atrasado entrou. Poderia não ter dado bola à neurose constante de um coelho escravo do cronos. Mas não. A curiosidade da infância remanescente a levou para dentro de um mundo novo. Melhor do que Platão. Na história da caverna, não fica explícito o que move o homem que se soltou das amarras, a sair da caverna para descobrir o mundo lá fora. Há sempre uma força que nos empurra, que nos move a fazer coisas novas. Há quem diga que quando essa ou outras forças diminuem ou acabam, morremos em vida.
Dentro de um mundo fantástico, Alice depara com o que todo pré-adolescente, via de regra, começa a enfrentar: valores sociais. A consciência ganha maior dimensão; os sentidos estão mais aguçados. A educação punitiva insere os grilhões do raciocínio. E aí? Obedeço aos meus desejos insurgentes, ou me mantenho firme nos valores que aprendi dos meus pais e tutores? Valores estes, inculcados em mim, fortes, pungentes, que se digladiam com desejos dos quais eu nem tinha conhecimento. Época complicada aquela em que não somos ainda adultos para ficar num grupo de adultos conversando na mesma freqüência deles, nem crianças para ficar brincando de stop. Precisa-se urgentemente de pré-adolescentes para convivência mútua, porque só eles se entendem entre si.
O filme que está sendo lançado não poderia vir em melhor hora. Uma hora em que se discutem valores sociais e individuais. Valores que eram defendidos com a faca nos dentes e hoje, dentes e facas os atacam ferozmente. Quem, com mais de 35 anos, não se lembra da letra de Rock das Aranhas do Raul? Ou aquela famosa passagem da música do Tim Maia: “... pode o que vier, só não pode dançar homem com homem, e nem mulher com mulher”. Quem cantaria, nos dias atuais, essas músicas com intenção séria de levar adiante essas mensagens? Nos anos sessenta, cantava-se o amor romântico, cujo objetivo último era a família e o casamento. Hoje, Rita Lee, muito feliz, canta o “Amor e o Sexo”. Na política então, não há melhor território para se discutir (e tentar resgatar) valores antigos. Ouviremos palavras há muito esquecidas como habitação, saúde, salário... Ouviremos também as palavras honestidade e compromisso, como se elas habitassem o outro lado da toca do coelho. Entraremos nas urnas, como que para decidir qual rainha continuará mandando cortar cabeças. Nesse momento, estaremos dentro da toca do coelho. Logo depois, sairemos de lá e continuaremos vivendo nossas próprias maravilhas.
A força do sonho geralmente é construir uma realidade fantástica. Algumas vezes não queremos acordar e outras, acordar o mais rápido possível. O que separava o mundo real do mundo das maravilhas era a imagem caricaturada dos personagens e suas personalidades meio doidinhas. Mas isso no século XIX. Hoje, pelo visto, não sei mais em qual lado da toca me encontro. Melhor tomar a pílula azul e continuar dormindo no casulo da Matrix. Os coelhos continuarão neuróticos, os chapeleiros malucos e as rainhas cortando cabeças, ainda que figuradamente.

22 de abr. de 2010

Uma Cidade Longe Demais

A operação Market Garden da Segunda Guerra Mundial, idealizada por Eisenhower foi um fracasso aliado, no cômputo geral. Perderam-se muitas vidas e não se ganhou nada, praticamente. O filme Uma Ponte Longe Demais, com grandes nomes do cinema da época, ilustrou esse fato histórico muito bem. A ponte do rio Arnhem, na Holanda, que daria livre acesso à Berlim e provocaria o fim da guerra. Ledo engano.
O Brasil de nossos avós e bisavós conheceu uma época conturbada de revoltas populares e militares. Aquela famosa e romântica foto da Revolta dos dezoito do Forte de Copacabana ilustra a facilidade com que se chegava ao Governo Central, na época, o Palácio do Catete. Era possível organizar uma revolta contra o poder no Brasil indo a pé, e se possível, adicionando correligionários ao movimento. Fantástico. Quantos governos atuais poderiam ter caído se o Palácio do Catete continuasse sendo a sede do governo brasileiro. O Brasil caminhou para uma descentralização do poder nos anos 50, mas claro, uma força contrária e muito conveniente, tratou de centralizar o poder geograficamente, criando o que eu chamaria de uma Cidade Longe Demais.
Não sou adepto da teoria de Ratzel, do determinismo geográfico, mas construir Brasília naquela região próxima ao lago Paranoá, foi de uma genialidade admirável. Longe de tudo e de todos. Muito convém isso num país continental como o nosso. Difícil acesso, fácil manipulação. E sem um povinho pra ficar enchendo o saco quando o aumento dos aposentados não é nem de longe satisfatório.
Uma cidade planejada. Patrimônio histórico da UNESCO. Orgulho brasileiro. O sonho premonitório de Dom Bosco. Não há turista que não se maravilhe com a beleza artística que a cidade propõe. Existe uma harmonia com o cenário natural, produto de uma mente brilhante como o Niemayer. Uma nova capital para um novo Brasil, que continua com essa frase de marketing eterna: um novo Brasil. Um barbudo há 2000 anos atrás chamaria isto de túmulo caiado. Expressão interessante.
Imagino o centro do poder nacional aqui, ao lado da capital gaúcha. O laçador, obviamente, pairaria orgulhoso à frente da Praça dos 3 Poderes, destacando-se sobre os candangos. O chimarrão seria bebida obrigatória no Senado. Nas campanhas presidenciais, Brasília se encheria de xotes, vaneiras, vaneirões e o que quer que seja a tchê music. Descontente com alguma votação da Câmara ou do Senado, eu pegaria um ônibus turístico e iria com cartazes e alguns compatriotas reclamar do aumento vergonhoso do salário mínimo. Veria senadores almoçando nos restaurantes chiques de nossa capital. Passaria por eles e gritaria: Libertas Quae Sera Tamen! Sabendo que não me dariam a mínima. Uma realidade próxima a mim, palpável. Lá está o poder político. Lá está a amante grávida deste, daquele...
Conviver com o poder, dá ares de poder. Mas Porto Alegre não é estrategicamente viável, então, o poder encontra-se afastado, inacessível. Ônibus é muito caro e demorado. Tenho que trabalhar, não posso me dar ao luxo de lutar contra as injustiças políticas faltando o emprego por uma semana ou mais. O povo vota, mas não pode gritar seu descontentamento. E o povo que mora perto do poder, precisa do poder para vender seu peixe. Rabos de peixe presos.
Brasília, a grande capital da Terra Brasilis. Comemora os 50 anos de sua inauguração. Dívida externa triplicada, uso do dinheiro da Previdência, um presidente bossa-nova, mas uma maravilha arquitetônica difícil de ser igualada. Brasília é a tevê de LCD 80 polegadas numa casa onde a renda familiar é de setecentos reais por mês com direito a "gato" na instalação elétrica. Construída para reinar solene. Não consigo alcançá-la, é uma cidade longe demais. Nem os dezoito do forte conseguiriam. Feliz aniversário, Terra do Nunca (na história desse país...)

12 de abr. de 2010

Prisões

Fausto Silva. Desde os tempos do Perdidos na Noite, grande programa de auditório, não o sigo. Bem, não assisto o domingão, mas nesse domingo, esperando o Fantástico a fim de garimpar uma crônica, deparei-me com aquele Fausto dos bons tempos: sensível, humano, e sutilmente, irônico.
Antes de iniciar o Fantástico, Fausto deu uma declaração que me fez refletir muito sobre a condição humana do século XXI. Fez um comentário choroso, agradecendo aos colegas de trabalho que estavam ali trabalhando com ele. Ele que tinha enterrado o pai, no dia anterior.
Estamos então, tão comprometidos com nossos afazeres e com nossa posição social por causa do trabalho? Não importando se foi o Fausto que quis trabalhar ou se foi a Globo que o “aconselhou” a não faltar o domingo à tarde, tão combalido por programas sem criatividade. Não é esse o centro, quem tomou a iniciativa do “show must go on”. Mas a questão que por detrás de uma imagem pública, do apresentador, tem um ser humano com um pai, que segundo ele, era um amigão.
Muito remotamente, lembro-me de uma vez que o Sílvio Santos não pôde apresentar o programa de domingo. Foi nos anos setenta. Uma vez apenas. Foi então que conheci o pedaço de carne por trás da voz: o Lombardi. Lembro-me que foi ele quem apresentou o programa.
Alguns filmes de hollywood apresentam essa problematização do mundo pós moderno: da escravidão que o trabalho proporciona no século XXI. Pais que são desafiados pelos filhos a passarem mais tempo com eles. Carência afetiva, o primeiro passo para a violência. Curiosamente, lembro-me do meu professor de história da faculdade dizer que havia lido um livro de ficção dos anos sessenta, afirmando que, nos anos oitenta, as máquinas fariam todo o trabalho do ser humano, e que este trabalharia apenas duas horas por dia. Pois bem, o que se vê é totalmente o contrário. Não há mais sábado nem domingo para alguns setores da produção. Na China não existe semana inglesa. Trabalha-se até no domingo, e nesse dia se sai mais cedo. Empresários saem com amigos para um jantar e acabam falando de trabalho. Transformam diversão em reunião. Fazem reuniões-almoço com o intuito de não perder tempo. Filhos atirados ao vídeo game enquanto pais atiram-se aos seus projetos, porque? Ou a carreira tornou-se a coisa mais importante do mundo, ou tem-se muito medo de perder o emprego, ou o cliente. Não creio que este seja o problema do Fausto.
Trabalho. Rendo-me aos grilhões da produção moderna, que exige do ser humano cada vez mais iniciativas e criatividade. De competitivos passamos a neuróticos. De neuróticos a bipolares. E de bipolares a contraproducentes. Porque buscamos a compensação para todo o nosso esforço. E essa compensação é mais esforço ainda. Não é à toa que o tempo tem passado mais depressa até para os jovens. Nem os pais podemos mais enterrar.
Faço minha as palavras sentidas de Fausto Silva. Admiro-o não só como profissional, mas também como pessoa. E fico consternado com seu sofrimento. Na idade média, algumas mulheres vestiam o preto do luto pela vida toda. Luto durava dias, em memória do ente querido que se fora. Hoje, vale a máxima “deixe os mortos enterrarem seus mortos”.
A prisão pode ter barras imaginárias, tal como o canarinho que mesmo com a portinhola aberta, não sai da gaiola. Podemos achar que é liberdade uma coisa que é, na realidade última, uma prisão. Baseado nisso, quando minha filha mais nova me conclama a um jogo de vôlei, não penso duas vezes em gritar pra ela: VAMOS PARA A PRAÇA!

10 de abr. de 2010

Ficha Limpa

“À mulher de César não basta ser honesta; tem que parecer ser honesta”. Essa frase atribuída a Cícero e recontextualizada para o momento atual, é de uma subjetividade excitante. Sim, porque hoje se dá mais força à ação do parecer do que para o “não basta”. Aparências, imagens, atitudes em frente às câmeras, tudo documentado. E produz-se a honestidade.
Honesto e trabalhador. Era esse o bordão paterno de minha adolescência. Claro que na hora de fazer o imposto de renda, o importante era o trabalhador. Honesto, nesse caso, era entregue à orgia do subjetivo. Dobrar uma esquina sem dar sinal depende do momento. Mas todos somos honestos. Passar a roleta (ou catraca) do ônibus com filho acima de cinco anos como se tivesse cinco, também não é desonestidade. Afinal, somos todos trabalhadores... e honestos. Nem vou falar de furar a fila porque “alguém” ficou guardando lugar para os amigos. Seria ousadia demais.
Ficha limpa. Tiradentes e os insurgentes contra a matriz lusitana. Um alferes, que tinha, digamos assim, “ideias malucas” acerca de liberdade, igualdade e fraternidade. A ficha dele sujou. Imagino-me sendo um funcionário da realeza escrevendo o laudo de execução, meus olhos talhados de lágrimas por ter cumprido com minha função pátria de lavrar o auto do contraventor do Império Português. Fui honesto, fui trabalhador. Tiradentes não. Não tinha a ficha limpa.
DOPS. Departamento de Ordem Política e Social. Quase fui fichado uma vez, por sorte escapei. Participei de uma passeata pelas diretas em Porto Alegre, e sei lá porque as autoridades acharam que nossas inocentes e honestas musiquinhas entoadas com o coração da ideologia de esquerda, eram ofensivas demais à ordem pública, e, honestamente, os porcos (como eram chamados os policiais militares na época) desceram o cacete nos honestos manifestantes da tranqüila passeata. Vários presos. Todos com a ficha suja. Até o Rod Stewart foi fichado no DOPS. Hoje, não existe mais.
O que seria honesto? Uma pessoa sincera e que diz o que pensa, é comumente confundida com uma pessoa honesta. Pode ela estar dizendo o maior disparate, mas pelo tom de voz firme e empostado, ela está dizendo o que pensa, portanto, honesta. Seria honesto pagar uma tevê em 24 vezes, mesmo sabendo que, desonestamente, os juros praticados pela loja estão muito longe de serem os determinados pela Constituição? Honesto seria sim, controlar o impulso. Em resumo, a honestidade é um conglomerado de princípios e ideias acumulados ao longo dos séculos, que todos sabem que existe, mas ninguém sabe dizer exatamente o que é. Caímos novamente na orgia subjetiva.
Que político terá ficha limpa? E que ficha será considerada limpa, realmente? Aquela do representante do povo que for produzido biopoliticamente? Aquela do político que continua, por baixo dos panos, a distribuir cestas básicas em troca de votos da população carente? Nada mais que o voto de cabresto revisitado.
Minha solução é simples, e por ser simples, soará idiota, não PARECERÁ ser razoável, porque foge ao academismo. O político de ficha limpa será aquele que se eleger com seus próprios méritos, não se ligando a nenhuma corporação que prenda seu rabo depois da eleição. Será aquele que não aceitará jantares de pessoas influentes, nem dirá sim a ligações no meio da noite para impedir esta ou aquela votação na câmara de vereadores, deputados ou senadores. Será aquele que quando vereador, não ficará sonhando em ser presidente da república. Será aquele que anda de ônibus, pois o dióxido de carbono dos carros aumenta o efeito estufa. Será aquele que não correrá cedo para votar aumento de salário dos políticos, mas aquele que será preso e terá sua ficha suja por ter organizado uma passeata intranqüila em prol de um salário mínimo realmente justo, ou uma forma mais justa de relação trabalhista. O político de ficha limpa será aquele conhecido por sua notoriedade, e não por sua fama, simplesmente. O político de ficha limpa terá, antes de tudo, um sentimento limpo de cidadania e cumprimento do dever. Exatamente como está escrito na Constituição.
A política brasileira, aquela que sonha com o óbvio, o do político de ficha limpa, vive da impunidade, mas esquece que antes da impunidade, os políticos vivem na imunidade, ou seja, criaram estratégias para PARECER serem honestos aos olhos do povo. Se for preciso, dançarão o reboleixon para angariar votos e depois de eleitos sumirão das vistas do público.
Proponho a ficha limpa pública brasileira: a de se anotar num papelzinho e colar na geladeira, o nome de todos os políticos que no passado fizeram algo que desagradasse o eleitor, e na hora do voto, levá-lo junto consigo para não esquecer de não votar naquele nome. Quem sabe, lá no plano de eliminação dos “menos limpos” não sobrará ninguém e a urna também poderá ficar “limpa”?

6 de abr. de 2010

Cultos, chiques, mas sim...ples.

Norbert Elias, em seu livro O PROCESSO CIVILIZADOR, Volume I, aponta para os costumes e hábitos da Alemanha do século dezenove. Gostaria de enfatizar a rigidez com que se produzia um Kulturrel (pessoa com alto nível cultural), todos os maneirismos, postura, linguajar, etiqueta, respeito às autoridades, aos mais velhos, aos pais, hierarquia e a tão famosa disciplina. Tudo era fleugmatismo. Não é de se admirar que o Dr. Freud, vienense, se preocupasse tanto com a histeria. Dado o plano de imanência da época, a constante vigília sobre os “bons costumes” era uma coisa causticante.
O que entendemos por boa educação é herança desse rizoma de normas disciplinadoras e punitivas da sociedade burguesa. Havia a necessidade de se diferenciar com certa consistência as classes sociais e não bastava que isso fosse demonstrado nas posses dos mais favorecidos: também o comportamento gentleman era uma diferença, uma força dominante na sociedade. Comer com a boca fechada (nos dois sentidos), não falar até que lhe seja dirigida a palavra; olhar nos olhos da pessoa com quem estamos falando, andar ereto, cabeça erguida, estar sempre bem vestido. Quando uma mulher levanta da cadeira, o cavalheiro levanta também. Curvava-se quando a mesma saía do recinto. Essa cena foi maravilhosamente demonstrada no filme KATE & LEOPOLD, e causa um pequeno e previsível espanto. Regras e mais regras que a sociedade moderna não mais pratica em sua plenitude, mas não esqueceu como norma de boa educação e bons modos. O velho senso comum dominando as mentes. Em resumo, quanto mais disciplinado, à custa de muita punição, mais educado. Hoje, vejo-me criando minhas filhas em modelos não muito distantes.
Os anos sessenta e setenta pregaram todo e qualquer tipo de libertação desses e outros costumes punitivos. Paz e amor (livre) era a frase da moda. Bem, esses jovens cresceram e tornaram-se pais. Alguns, donos de empresa de sucesso, outros, chefes de setor e outros, apenas outros. Como pais, ainda que inconscientemente, criaram seus filhos de maneira semelhante ao que foram criados. Foram disciplinadores, punitivos, mas com “flowers in their heads” ainda curtiam Janis Joplin, Beatles, Stones, Bob Dylan e Joan Baez.
A juventude dos noventa, filhos da juventude dos setenta, pregaram um outro tipo de libertação: a de que o jovem deveria ter sua voz na sociedade. Cidadania. Jovem vota, jovem derruba presidente, canta Nirvana, anda de grunge e participa de uma caminhada pela paz no Oriente Médio. Vai à balada, mas passa no shopping antes para conferir se não está fora de moda. Esses então serão os pais do século vinte e um. Aquele que ensina o filho a criticar, mas quando este aprende, não admite ser criticado. E o jovem de hoje passa no vestibular, mas também passa com o semáforo fechado sem culpa alguma.
No entanto, mesmo com todas essas disparidades, vemos um jovem despojado de diferenciais classistas. Arrumam-se, produzem-se, curtem as baladas, têm suas tribos como é próprio do ser jovem, e mantém laços dentro e fora do seu âmbito socioeconômico. Não dividem as festas por classes, dançam conforme seus gostos, que em geral, são variados. Vão a jantares chiques com seus pais, mas não se sentem desconfortáveis comendo um cachorro quente de carrocinha, nem um bauru ou salgado da Confeitaria do seu Zé da esquina. Todos muito chiques, com seus carrões estacionados na frente. E nem se deve ao fato que os restaurantes chiques não abrem no despontar do dia, e sim, pela própria curtição do momento.
Rio da minha juventude, em alguns aspectos, classista e racista. Era um sacrilégio ver uma loira abraçada a um afro-descendente. Metaleiro não ia à roda de samba (eu ia escondido). Velho não participava de festa de jovem. Tenho orgulho de ver minhas filhas livres desses condicionamentos.
Aqui em Porto Alegre, chamamos carinhosamente as carrocinhas de cachorro quente de “morte lenta”. O meu preferido é o da República com a Lima e Silva. É lá que eu vi esses jovens despojados que citei, e foi lá que eu senti a revolução do mundo pós moderno: junto ao convidativo cheiro do molho milenar do cachorro, um aroma de Chanel nº.5, um Givenchy, ou mais ousadamente, um Agnes B importado.
Novos paradigmas, novas concepções, novos comportamentos. E dê-lhe morte lenta nas manhãs de domingo, cultos, chiques e simples. Vamos ver o que o Norbert Elias do futuro escreverá sobre isto.

1 de abr. de 2010

Ursinha da Páscoa

Naquele ano, só se falava nisso, no país dos bichos. — Como? É tempo de renovação, de troca. Chega de governo dos machos. Uma fêmea no poder trará vida nova ao evento. E o mundo não é mais dos machos — bradava, emocionada a águia mãe. A Páscoa, grande evento no mundo animal, estava se aproximando e um grupo descontente com coelhos e ovos, clamava por mudanças. Estranha essa história. Coelhos são mamíferos, não botam ovos. Aventava-se maracutaia na coisa toda.
Maracutaia nada — defendia-se o coelho — há tempos, nós coelhos, branquinhos, fofinhos, levamos alegria ao país dos bichos, entregando ovos de chocolate. O castor interrompe: — Como assim, chocolate? Então não eram ovos de aves, naturais? Por acaso a ONG de proteção aos animais que se alimentam do cacau sabe disso? Ou alguém molhou a mão das garças fiscais? Bem mais tarde ficou-se sabendo que sim, mas o coelho jurou não saber de nada, era esse o seu bordão. — Nunca, na história do país dos bichos, se distribuiu tantos ovos quanto agora — abriu-se então, uma CPI para apurar o caso dos ovos serem de chocolate, mas os elefantes da justiça, lentos e arredios, demoravam-se a redigir o texto final do processo. A população, já acostumada, sabia que tudo acabaria em pizza, servida na taberna da raposa.
Assim era a situação do país dos bichos, uma enorme nação, que se estendia da floresta à savana. O castor, em solene comício, lançou-se a candidatura para substituir o coelho da páscoa. O coelho já via-se impossibilitado de uma reeleição, então resolveu apoiar a ursa, conhecida por sua juventude rebelde e revolucionária em prol da distribuição dos ovos de chocolate para todos e não somente para os filhotes dos predadores. O castor e seu séqüito de doninhas, ariranhas e arminhos viam a ursa como terrorista, com cara de mau e uma predadora igual aos predadores que ela tanto combatera quando jovem. Disputa difícil.
— Mas, a gente é obrigado a votar? — Sim, está contido na constituição que todos os bichos maiores de 16 até os 60 anos, são obrigados a votar. É um dever. Aliás, é um direito antes de um dever. As cotovias e os pica-paus argumentavam que isso não era democrático, a obrigatoriedade do voto, mas o povo em geral não discutia essa questão, tudo estava centrado em quem substituiria o coelho, e o principal, O QUE seria distribuído.
Desde que o leão abdicara de ser o rei e entregou o país dos bichos a uma república, o povo perdeu o referencial do poder. Os primatas, cultos, separados do resto da bicharada pela acadêmica posição de habitar no alto das árvores, alegavam que o verdadeiro poder era exercido pelas corujas, que detinham em suas mãos a comunicação e a mídia. Diziam, resignados, que nada poderiam fazer contra o poder da comunicação.
Houve até quem se candidatasse além da ursa e do castor. Animais sem grande representatividade, era o que se ouvia nas alamedas. A serpente advogada, por exemplo. Já carregava nas costas um histórico negativo de astúcia e traição. Mas era da nobre profissão dos advogados, missão reservada a quem fosse cobra. Também tinha a vaca, professora, psicopedagoga, forte, resoluta, de uma classe que todos dependiam, mas que carregava uma fama ruim, de simplesmente ser vaca. E, além do mais, a alcunha “Vaca da Páscoa” não cairia bem.
Tradições. Muitos viviam sob o jugo das tradições. — Pra quê mudar? Por quê, mudar? — Páscoa era páscoa, todos sabiam disso. Era coelho, primavera, renovação, ovos, e era isso. Não. Fazia-se necessário acompanhar os ventos da mudança. A ursa não distribuiria ovos de chocolate, não iria se ligar a falcatruas do passado. Ela seria pioneira, e inauguraria os famosos “Favos de Páscoa” e o mel seria a nova tradição da festa anual. O castor promoveria uma ideia nova, mirabolante, mas que ninguém sabia o que era. E os outros candidatos? O que estariam preparando?
Todos iriam votar. Todos TINHAM que votar. Escreveriam a história, à força, não por livre vontade. Até que um primata, ao pesquisar as fontes históricas descobrira que páscoa não estava ligada a ovos e coelhos. E o mais importante: o país dos bichos ficava no hemisfério sul, portanto a páscoa não era na primavera, mas na entrada do outono. Então, a renovação era uma falácia.

Feliz Páscoa. Ho...ho....ho... ops.