27 de abr. de 2010

Alice no País das Maravilhas

Lewis Caroll. Uma inocente história infantil. Historinha difícil. Um mundo de maravilhas com uma maravilhosa rainha que manda cortar cabeças. O romantismo do final do século XIX revisitado pelo vandalismo das execuções medievais. Claro que, como toda aventura romântica e romanesca, alguém necessariamente precisa encarnar o mal, pois o bem e o heroísmo só existem em função dele.
Assim como Édipo, uma história que leva a inúmeras interpretações e viagens mentais. Um mundo de fantasias cujo portal é a toca do coelho. Ali, naquele eterno aión, o eterno tempo do “logo depois”, deixa-se a realidade para dirigir-se ao mundo da fantasia. Dentro do mundo da fantasia, questionamo-nos se não havíamos vivido a fantasia no mundo anterior. É como ficar rico de uma hora pra outra: a época que se era pobre foi apenas um sonho ruim.
Uma menina curiosa. Força dominante a curiosidade do homo sapiens. Após perdermos o medo, graças ao uso do fogo, das ferramentas, do Oráculo de Delfos e do notebook, a curiosidade passou a dominar os corações. Alice poderia muito bem não ter entrado onde o coelho atrasado entrou. Poderia não ter dado bola à neurose constante de um coelho escravo do cronos. Mas não. A curiosidade da infância remanescente a levou para dentro de um mundo novo. Melhor do que Platão. Na história da caverna, não fica explícito o que move o homem que se soltou das amarras, a sair da caverna para descobrir o mundo lá fora. Há sempre uma força que nos empurra, que nos move a fazer coisas novas. Há quem diga que quando essa ou outras forças diminuem ou acabam, morremos em vida.
Dentro de um mundo fantástico, Alice depara com o que todo pré-adolescente, via de regra, começa a enfrentar: valores sociais. A consciência ganha maior dimensão; os sentidos estão mais aguçados. A educação punitiva insere os grilhões do raciocínio. E aí? Obedeço aos meus desejos insurgentes, ou me mantenho firme nos valores que aprendi dos meus pais e tutores? Valores estes, inculcados em mim, fortes, pungentes, que se digladiam com desejos dos quais eu nem tinha conhecimento. Época complicada aquela em que não somos ainda adultos para ficar num grupo de adultos conversando na mesma freqüência deles, nem crianças para ficar brincando de stop. Precisa-se urgentemente de pré-adolescentes para convivência mútua, porque só eles se entendem entre si.
O filme que está sendo lançado não poderia vir em melhor hora. Uma hora em que se discutem valores sociais e individuais. Valores que eram defendidos com a faca nos dentes e hoje, dentes e facas os atacam ferozmente. Quem, com mais de 35 anos, não se lembra da letra de Rock das Aranhas do Raul? Ou aquela famosa passagem da música do Tim Maia: “... pode o que vier, só não pode dançar homem com homem, e nem mulher com mulher”. Quem cantaria, nos dias atuais, essas músicas com intenção séria de levar adiante essas mensagens? Nos anos sessenta, cantava-se o amor romântico, cujo objetivo último era a família e o casamento. Hoje, Rita Lee, muito feliz, canta o “Amor e o Sexo”. Na política então, não há melhor território para se discutir (e tentar resgatar) valores antigos. Ouviremos palavras há muito esquecidas como habitação, saúde, salário... Ouviremos também as palavras honestidade e compromisso, como se elas habitassem o outro lado da toca do coelho. Entraremos nas urnas, como que para decidir qual rainha continuará mandando cortar cabeças. Nesse momento, estaremos dentro da toca do coelho. Logo depois, sairemos de lá e continuaremos vivendo nossas próprias maravilhas.
A força do sonho geralmente é construir uma realidade fantástica. Algumas vezes não queremos acordar e outras, acordar o mais rápido possível. O que separava o mundo real do mundo das maravilhas era a imagem caricaturada dos personagens e suas personalidades meio doidinhas. Mas isso no século XIX. Hoje, pelo visto, não sei mais em qual lado da toca me encontro. Melhor tomar a pílula azul e continuar dormindo no casulo da Matrix. Os coelhos continuarão neuróticos, os chapeleiros malucos e as rainhas cortando cabeças, ainda que figuradamente.

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