29 de mar. de 2010

Bode Expiatório

Pobre bode. A comunidade judaica tinha um costume ritual de levar um bode ao deserto jogando nele todas as culpas dos homens, a fim de que os pecados fossem lavados e a consciência ficasse tranqüila. Bom para um reinício de atividades pecaminosas. E lá ia o pobre bode, novamente para o deserto. A igreja católica jogou o suplício do bode para o sacerdote, instituindo a confissão, antes da sagrada eucaristia. Bem, na Europa medieval não existiam desertos escaldantes, tanto melhor para o clérigo. Importante serviço de informações. O padre de uma paróquia era o dual core da época: recebia e processava todas as informações pecaminosas de uma comunidade, usando-as como bem lhe aprouvesse. O mundo moderno diminuiu o fardo desses sacerdotes, criando algo mais técnico: o psicoterapeuta, e com um plus: podia-se contar o maior dos pecados, sem ter que agüentar a expressão de reprimenda do sacerdote. Bem, quanto ao bode, esse pobre animal não reprimia ninguém, ou se reprimisse, nenhum sacerdote judeu entenderia sua linguagem mesmo. O psicoterapeuta então, leva os pecados modernos, todos, subjetivamente justificados por transtornos, síndromes e outras psicopatias. É tanta coisa que já se discute se existe ou não uma normalidade psíquica. O fato é: agüentar as culpas não é para o indivíduo; há que se compartilhar, há que se expurgar.
O termo culpa ganhou uma nova dimensão, chamada polidamente de “responsabilidade social”. Aqui, em Porto Alegre, numa faixa de segurança onde não tem semáforo, basta que o pedestre estenda o braço para frente a fim de que o motorista deixe-o atravessar. Não é uma obrigação do motorista e sim, gentileza. Constrange. Muita gente não dá bola, mas se o motorista passa, não tem responsabilidade social. Às vezes passa tão rápido que não dá tempo para a culpa. Outro exemplo: o dióxido de carbono saído do escapamento dos carros está em segundo lugar no Brasil como contribuinte para o aumento do efeito estufa, um agravante ao aquecimento global que o planeta vem atravessando. Entretanto, a venda de automóveis só viu crescimento nesses últimos cinco anos. Mais automóveis, mais dióxido de carbono; mais automóveis, mais rodovias, menos ciclovias. E andar de bicicleta é tão saudável, pena que não dá status. A gatinha não vai querer andar no banco de trás de uma bicicleta dupla e ainda ter que pedalar. Então, expele-se cada vez mais dióxido de carbono na atmosfera. Aí vem a conscientização de grupos ecologicamente corretos. E com a consciência do erro, vem a culpa. Não a culpa do hebreu antigo, ou do europeu medieval, mas a culpa pós moderna, do “todo mundo faz mesmo”. Ainda assim, a culpa está lá, impressa numa parte do cérebro em que se sabe muito bem que estamos fazendo algo de errado e que esse erro pode prejudicar a nós mesmos e às gerações futuras. Algo precisa ser feito. O deserto de nossas almas clama por novos bodes.
Então, eis que a redenção aparece do mesmo lugar onde se criou a culpa: das organizações de proteção ao meio (desculpem-me, mas “meio ambiente” é uma redundância, por isso não uso o termo). São elas que nos conscientizam do problema e de nossa participação nele. Ao mesmo tempo e nos mesmos moldes das principais religiões do mundo moderno, essas organizações que criam a concepção do erro, criam, ao mesmo tempo, a expiação das culpas. Nada se cria, tudo se copia.
A água potável, em quantidade, é a mesma há milhares de anos. O que aumentou foi o seu consumo. Também se poluiu muito alguns recursos hídricos importantíssimos para a vida. Gasta-se cada vez mais energia elétrica. Também né, quem mandou baratear o preço dos aparelhos de ar condicionado? Não me preocupo com o presente, mas rio copiosamente do futuro. O aumento da oferta de produtos eletro-eletrônicos que proporcionam conforto cresce em progressão geométrica, enquanto que a construção de novas matrizes energéticas cresce em progressão aritmética. Mas, voltemos à culpa e ao “bode digital”. Não é o consumidor que mais gasta água ou eletricidade. No quesito água, 70% desse gasto fica por conta da agricultura. No quesito eletricidade, a indústria tem os índices mais elevados de gasto. Mas, ninguém faz campanha pra agricultor ou industriário, afinal são eles que tocam o progresso. A culpa toda fica para nós, pobres bodes.
Bem, alguns dias atrás o mundo empenhou-se em manter as luzes apagadas durante uma hora, a fim de conscientizar-se da economia de energia. Um bode, mas com um “quezinho” de hipocrisia, que aliás, nem é mais pecado. O termo hipocrisia foi substituído pelo termo “papéis”. Mas, mesmo que alguém não tenha participado da campanha, a culpa social foi expurgada. Economizou-se energia, alguém o fez por mim. A sociedade cumpriu com a responsabilidade social, e eu nem precisei participar.
Paliativos. Eles existem enquanto não é inventada a solução maior para um problema. Melhor e mais fácil do que exterminar com o pecado é expiá-lo constantemente. Afinal, pecados vêm de desejos do ego. E desejo, ninguém segura.

25 de mar. de 2010

Três Cuecas, minhas Parcas.

Sim. Tenho TOC. Em determinadas proporções, todos temos o toquezinho nosso de cada dia. Alguns aceitáveis, outros bizarros. Um dos meus é excêntrico: são 3 cuecas que deixo no banheiro secando, usando uma enquanto as outras duas secam. Estranho? Não. Metódico e diria com ousadia smithsoniana do pré consumismo: econômico. Uso as três sempre. Tenho outras, não sou sovina. Mas estão lá no guarda roupa, em stand by, como o reserva que espera ansiosamente para entrar no jogo.
Essas cuecas têm um significado que transcende ao utilitarismo de sua função pétrea de segurar e proteger minhas jóias: elas me dão a noção da passagem do tempo, do inexorável chronos que devora-nos pouco a pouco todos os dias. Duas azuis e uma preta. Não sou gremista, é que gosto de cores padrões. Cada vez que coloco a preta, seca depois de dois dias, dou-me conta que o tempo passou. Isso não é mais comum, ver o tempo passar. O mundo moderno transformou o dia num antro de atividades rápidas ansiando por soluções urgentes, e não mais por manhã, tarde e noite. Por isso as cuecas: elas me fazem parar pra ver que o tempo passa.
Não só passa, mas faz com que nos ajustemos, nos adaptemos, e, infelizmente, depreciemos. Aos pouquinhos, órgãos e partes vão funcionando com menor eficácia. Uma delas falirá primeiro. Uma de minhas cuecas já dá mostras de impotência. Já não tem mais elasticidade, perdeu a cor. Eu a fito, e sei que ela também me olha com a mesma expressão que diz: — eu vou primeiro, mas um dia nos encontraremos na reciclagem da vida. Ela sabe que será substituída logo, mas não fala, não reclama, não reivindica conserto. Sabe que na imanência da vida, o retorno é sempre diferente. Sabe também que outras cuecas já estão no aquecimento.
Curiosamente, as parcas gregas, donas do destino, também eram três. Também são três, as visões diferentes do tempo para os gregos. Minhas 3 cuecas no banheiro (duas, pois uma estou usando) são as minhas parcas particulares. São elas que me mostram que um dia, haverei de ir, para que outro entre no jogo da vida. Mas, como elas, não reclamo nem reivindico. Abnego-me. Resigno-me a esse faminto chronos, que leva minhas forças, mas não leva minha teimosia em criar, e recriar. Talvez essa seja a eterna reciclagem: a criação.

23 de mar. de 2010

Medonismo

Foi realmente engraçado ver as cabeças, inclusive a minha, batendo na guarda da poltrona do cinema, quando um bólido veio na direção da platéia, no filme Avatar. A sétima arte começa o novo milênio com um plus: não desperta somente sentimentos e emoções; desperta também os reflexos. Falta pouco para os odores a fim de que a arte e a vida estejam equalizadas.
Vida. Um mosaico de sentimentos, emoções, sensações, intuições e um monte de outros “ões”. Não a vida em si, mas o que enxergamos dela. Todo esse caos de condições gera o que chamamos experiências. O conjunto destas experiências significativas geram lembranças. Estas se escrevem na história, chamada de Livro da Vida. Simplório, não?
Num passado lá não muito distante, as famílias em geral eram fartas na sua prole. Não somente pela falta de práticas anticoncepcionais mais eficientes, mas porque a mortalidade infantil era enorme. Ter um número considerável de filhos era uma maneira de garantir a continuidade de uma família sadia. E a vida não era lá um pps de fotos e frases bonitinhas. Era dura, muito dura. Nos anos setenta vi mulheres castigadas psicologicamente porque haviam casado e não tido filhos logo. Claro que não uma penca de filhos, mas filhos. Continuidade. Do nome, da família. E um churrasco em todo domingo em que alguém fizesse aniversário. Muitos filhos, muitos domingos. Então, para as classes menos privilegiadas o lazer resumia-se a pequenas possibilidades de acesso. Pequenos prazeres. E o constante sonho com prazeres maiores. Aos ricos, principalmente na Europa do século XIX, os acessos eram muitos, mas as exigências de uma vida aristocrática exigiam das crianças e dos jovens muitos sacrifícios. Então, curtir a vida não era lá uma filosofia reinante.
Lazer. Elemento essencial à vida e à sua qualidade. Beethoven retirava-se com freqüência ao bosque de Kahlenberg, ficando lá por horas. Mesmo surdo, “ouvia” o canto dos pássaros na primavera. Ir ao shopping comprar e comprar. O canto dos pássaros foi substituído pelo dvd da banda emo do momento. Formas diacrônicas de lazer, variadas, múltiplas.
Lazer moderno. O virtual, o simulado. A quem devemos isso? Tecnologia, superprodução, sim, mas não totalmente. Inventei um conceito: o medonismo. Sim, a perfeita mistura entre o medo e o hedonismo. A constante busca do prazer momentâneo e efêmero que gera um super apego à vida e um medo enorme da morte.
O curtir a vida ganhou uma significação diferenciada. Experimentar, aproveitar o máximo o melhor que a vida nos oferece. Antigamente, vivia-se para o trabalho, vetor de dignificação dos valores humanos. Hoje, ao contrário, trabalha-se para viver, e viver bem. Uma balada, um bar com música ao vivo, uma conversa gostosa (depois de uma tarde no shopping comprando e ouvindo os “pássaros”). Um filme, uma pizza. Um game novo. Um cabelo novo. Uma tattoo nova. Um carro novo.
Mil possibilidades, só uma questão de acesso. E, logicamente, dinheiro. Claro, trabalha-se e muito por conta desse acesso. Ao prazer de momentos passa-se por muito estresse. Emocional, físico, preocupações, competitividade.
Dois dos lazeres que mais me davam prazer quando pré-adolescente eram jogar bola na calçada e andar de bicicleta na rua. Na época, a criminalidade reduzia-se à classe dos ricos. A média não estava nos planos dos assaltantes. Hoje, roubar qualquer coisa que permita comprar uma pedra de crack virou moda. O curtir a vida, o hedonismo compete diretamente com o medo. Eles não são contrários, eles se completam, porque um é a força do outro. Medo do assalto, do seqüestro relâmpago, da venda de órgãos, do rapto de meninas para o comércio de escravas brancas. Crianças e adolescentes confinados em apartamentos na frente de computadores, inertes, interagindo com o virtual, engordando, fabricando transtornos alimentares. Pais com medo, filhos com medo, sociedade com medo, buscando cada vez mais, prazeres novos, rápidos, porém intensos.
A vida, tão fácil conceituar ficou difícil de definir. Hedonistas. A indústria do lazer está aí, produzindo novidades tão rápido que não temos nem tempo de aproveitar a que estamos vivendo. Os ricos, em tempo real, os pobres, com alguns anos de atraso (não comprei minha tevê de LCD ainda).
Talvez seja uma boa hora para refletir algumas coisas. Parar de correr atrás do vento da tecnologia, da corrida desenfreada do mundo da superprodução e ir um pouco mais devagar, ao exemplo de nossos antepassados. Amar a vida em toda sua plenitude, mas com ela, aprender também a morrer, e ver nisso, uma coisa boa, naturalmente. Afinal, a cada dia que passa, aproximamo-nos mais da morte. Que ela caminhe ao nosso lado, sem medos. Rindo, aliás, com ela.
A vida nos espera, sempre no amanhã. Sem medos, sem receios. Ouça os pássaros. E olha que você não é surdo, colocando-o num patamar bem acima de Beethoven. Ele, com certeza, daria tudo para ouvi-los.

18 de mar. de 2010

História Oficial

Historiadores buscam reconstruir a história. Valem-se das mais variadas fontes de informação para obter o máximo de aproximação da realidade. Leio, por exemplo, com um grau considerável de sarcasmo o que os livros didáticos do Ensino Médio dizem sobre o Plano Cruzado, de 1986. Isto, para mim, não foi história, foi vida. Uma outra intensidade. Eu vivi aquilo. Estava lá, quando anunciaram o feriado bancário para a troca de moeda e indexação. Vi congelarem os preços, paguei ágio. Ouvi a conclamação a nos tornarmos “fiscais do Sarney”. Lembro-me de pessoas próximas a mim defendendo o plano com unhas e dentes, e em contrapartida, meus professores de história da faculdade, com as mesmas unhas e dentes derrubarem qualquer possibilidade do plano dar certo. E não deu. A história oficial assim acusou. Planos e planos se sucederam a este. Eu vivi, ninguém me contou. Quando a micro história entrega-se, por um propósito maior, à macro história, o resultado são as vítimas da história oficial. Estas, tão numerosas quanto as catástrofes naturais que têm assolado nosso querido e combalido planeta.
Um homem estaciona seu carro em frente a uma pizzaria, a fim de buscar sua esposa que fora visitar a mãe. No início da noite, a pizzaria já conta com um número considerável de fregueses. Distraidamente o homem sai do carro e é prontamente abordado por dois sujeitos. Objetivo primário: assalto à mão armada. Levar o carro para o Paraguai, essas coisas normais de praxe da vida moderna. Ao ver que o homem estava armado, pois era um policial aposentado, o assaltante não hesita, atira no homem e se afasta. Dos tiros disparados, três acertaram o policial, que mesmo ferido, saca de sua arma a fim de defender-se. Instinto. Um outro instinto, o de proteção sobrepõe-se ao anterior: os assaltantes estavam na frente da pizzaria. O homem hesita. Não quer ferir ninguém, então não atira. Os assaltantes fogem, sem levar nada, ou quase a vida do policial. Este é acudido e levado para o hospital, onde a história oficial tem seu início. Logo, logo, ele se transformará de tragédia pessoal em estatística. Estatística de morte, estatística de assalto. Mas ele não morre e vira estatística de sobrevivente. A força de um evento perde toda a intensidade quando vira estatística. Vai ver então que é por isso que ela existe.
A ocorrência policial. Do relatório escrito é que se tira a notícia que vai parar no jornal. “Delegado aposentado, assaltado em frente ao edifício onde morava, atira nos assaltantes, descarrega sua pistola sem acertá-los e é baleado”. Bem, ao menos eles acertaram que o policial era um delegado aposentado. O que apareceu no jornal e o que está na internet não é, nem de longe o que aconteceu, visto por quem viveu o fato. Mas, que fique assim, afinal, é só estatística.
Reporto-me a 14 de julho de 1789, em Paris. Uma época em que a história oficial só era contada e lida pelos poderosos. A grande maioria da população francesa não sabia ler nem escrever, não precisava. Sentado à beira de uma fonte, estou eu, menestrel poeta, perdido em devaneios (eu sabia ler e escrever), procurando as palavras adequadas para uma nova canção. Quem sabe cantar um futuro onde os homens pudessem voar alto no céu. Seria chamado de louco, mas... menestrel... essas coisas novas, essas ideias novas invadiram aquela época clamando por um mundo mais igualitário. Surgiram livros que derrubavam o senso comum e que balançavam a cabeça de quem os lessem. Discursos inflamados nas praças levavam o povo a protestar contra impostos absurdos e contra a tirania de um poder absoluto que gastava demais ajudando camponeses da América do Norte a se libertar do poder inglês. Sentado então, perdido em pensamentos, ouço um barulho ensurdecedor de vozes, rodas, carroças e tiros. Líderes iam à frente da turba incitando o povo à revolução. Gritos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade ecoavam nos meus ouvidos. Aquilo, realmente... estaria acontecendo? Ao passarem por mim, mosquetes, foices e tridentes bramiam furiosos. Um integrante da procissão revolucionária incitou-me a participar do levante. Disse-lhe apenas que eu estava compondo uma canção do amor real. Acho que o homem não ouviu a palavra amor, e somente “real”. Bem, perdi meu braço com um golpe de espada. Devido ao ferimento, não sobrevivi para perceber que eu estava diante do acontecimento que mudaria a vida do mundo civilizado. Sorte que naquela época não haviam estatísticas para detectar quem era revolucionário e quem era reacionário. Eu seria uma vítima da história oficial, com certeza.
Somos vítimas dessa inexorável história, a oficial. Contada por quem possui interesses próprios , ela, juntamente com estes, exerce poder. Não há notícia sem informação e não há informação sem pressuposto. A história só é justa para quem a escreveu (seria o que os astecas diriam). Só não gostaria que no futuro, ao cruzar informações, um historiador chegasse à conclusão que certo setor da polícia não era treinado o suficiente. Onde já se viu um delegado errar todos os tiros? Sim. Somos todos vítimas da história oficial.


P.S.: Essa crônica é uma homenagem ao meu pai, uma vítima da história oficial.

14 de mar. de 2010

Desvencilhar/Desenlaces

Um telefonema. Choro, ranger de dentes. É a quinta vez essa semana. A existência medida em passos e atos. A ânsia da comunicação. O hábito. Querer estar junto e ao mesmo tempo não suportar estar junto.With or without you, sucesso do U2. Vetores de potência do desejo, do cheiro, da incompatibilidade de gênios, da tonelada de micro histórias frustrantes num relativamente curto período de tempo, criando um caos na mente que nos empurram às mais variadas sensações e atos de impulsividade.
Por que é tão difícil se desvencilhar de um relacionamento significativo? Por que é tão difícil simplesmente cessar o hábito de estarmos em constante contato e comunicação mesmo sabendo que a convivência não é mais possível? Quando contabilizamos a relação e pesamos aquilo que suportamos e aquilo que não suportamos, esquecemos que as partes boas são difíceis de simplesmente, deixar ir.
Os jovens que são frutos da revolução técnico-científica criaram uma linha de fuga que mais ou menos resolve esse problema: o ficar. Satisfazem-se os desejos de afeto e libido, sem contanto criar um vínculo mais forte, o do hábito. Há que se analisar isso historicamente, pois a vida a dois era centrada do núcleo família, e não propriamente na relação em si. A relação criava funções, e consequentemente, papéis sociais. Com isso se convivia muito bem. A relação amorosa era relegada a segundo plano, onde, no final da vida, criava-se um companheirismo respeitável, aos olhos dos mais novos.
Voltando ao Ficar. O próximo passo dessa nova fase de relacionamento chama-se ficante. O ficante é aquele “pré-namorado”, ou seja, a pessoa que vai à festa e fica por várias vezes com a mesma parceria, por festas e festas. Esse ficante vai criando características especiais e o que era uma simples admiração transforma-se em paixão. Aí, de ficante a namorado é apenas uma questão de semântica. Há também a corruptela do ficante, que é o “fincante”. O próprio termo já induz à sua significação. Não se admira a personalidade, mas a performance. E geralmente se fica nisso.
E o relacionamento, frugal, descompromissado, pode desenvolver para o compromisso, aquele, do anelzinho de prata. Começam os hábitos. Ver filmes juntos e rir dos comentários. Jantar no mesmo restaurante sempre. Ir visitar a família em alguns fins de semana. O chimarrão na Redenção no domingo à tarde. E mails, melosos, torpedos doces, durante a semana, na hora do trabalho. Dividir tristezas, comemorar conquistas. Planejar o futuro numa folha de caderno rasgada. A noite intensa depois de uma briga boba. Tudo isto é hábito, e como todo hábito, cuja natureza é a repetição, é bom e duradouro. Nem que seja em nossa mente.
Tudo desgasta com o tempo. E, na revolução técnico-científica, o desgaste é mais rápido, por puro hábito. E carece de ser renovado. Se não pode ser renovado, que seja trocado. Relações desgastadas são difíceis de serem renovadas, e uma nova projeção surge, paralelamente, assim que um determinado problema sem solução fica insuportável. Não há rupturas. Há processos.
A separação inevitável traz consigo a perda do hábito. Do gostoso hábito de se cultivar coisas gostosas da vida... juntos. Como a eterna criança dentro de nós que fica alegre quando ganha uma barra de chocolate, mesmo sabendo que engorda. Desvencilhar. Coisa difícil. Forçamo-nos a isso para que o sofrimento cesse. Queremos nos libertar dos grilhões da relação, mas se pudéssemos, levaríamos a parte da outra pessoa que contém o hábito das coisas que nos proporcionam prazer junto conosco.
Como sempre, o tempo, o inexorável chronos, apaga o hábito e a vida moderna nos empurra facilmente à criação de outros. Que estejamos de bem com esse desapego natural. E que aprendamos que o hábito bom é antes de tudo uma prática individual, para depois ser praticado a dois. Afinal, dá pra tomar um bom chimarrão na Redenção, sozinho, acompanhado de um violão e uma canção do Chico, que diz o seguinte:

“Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim, não me valeu... mas fico com o disco do Pixinguinha sim, o resto é seu. Trocando em miúdos...”

8 de mar. de 2010

Jovens & Trotes

Dois meninos amarrados a um poste. Caras pintadas. Uma menina toma vários goles de uma bebida alcoólica, direto da garrafa. Tapas, cuspidas. Tudo isto mostrado numa reportagem que versa sobre o famoso e conhecido trote.
1982. Janeiro. Lembro como se fosse hoje. O listão de aprovados da Federal. Incrível, o trote foi ali mesmo. Rapazes e moças, não escapava ninguém. Saíam correndo, comemorando a aprovação e eram caçados por um grupo de sêniors do diretório acadêmico, com uma máquina manual de cortar cabelo, tosquiando, ao bom modelo gaúcho, cabelos inocentes. Carecas. A marca da aprovação. Ninguém reclamava, pois eram os novos privilegiados de uma universidade pública de alta conta, que elegia um grupo seleto de estudantes: os melhores. Tive sorte. Passei pelo local do delito por acaso, vi o que estava acontecendo, olhei meu nome na lista e fui comemorar em casa. Meu cabelo sempre foi ruim de crescimento.
Passei muito trote na juventude. Ligava para um número qualquer perguntando ao interlocutor se havia um fusca gelo na frente de sua casa. Como a resposta era quase sempre não, a réplica era “então vai ver, já derreteu”. Desligávamos o telefone na cara da infeliz vítima e ríamos sem parar. No país da única lei que ninguém contesta, a de Gérson, um trote era um “pleno exercício” do que seria o mais conveniente no mercado de trabalho. Óbvio que, como toda lei, não funciona sempre.
Trotes de faculdade não são um fenômeno atual, muito menos endêmico. Em várias partes do globo pratica-se tal atividade, alguns até com responsabilidade social. É praticado também há muito tempo, e visto com o olhar antropológico como um ritual de passagem, tipo — “muito bem, acabou a mamata... bem vindo ao mundo dos adultos” .
Com o passar dos anos, os trotes violentos e com o intuito de humilhar aumentaram consideravelmente. A violência é um dos efeitos de vários vetores da sociedade pós moderna. Também a humilhação, fruto de uma hierarquização, aparece constantemente no mercado de trabalho, de forma mascarada. Jovens em fase de conclusão, os seniores, impingem castigos dolorosos, em nome de uma pirâmide social baseada na antiguidade. Na reportagem da tevê, no caso, eram estudantes de medicina. Curioso. Os mesmos que cuidarão de vidas um dia, praticam a violência e a humilhação. Hipócrates de Cós com certeza entraria em conflito existencial. Aliás, quero aproveitar para dizer que paradoxos como estes já se tornaram comuns na atualidade.
O que se passa na cabeça de um grupo de jovens que tramam um trote daquele tipo? Sim, porque tudo aquilo foi premeditado e bem planejado, se não, repetido. Quais vetores de potência incidem sobre muitas mentes que receberam uma boa educação familiar? Limite demais? Limite zero? Com certeza, muitos dos calouros que sofreram o trote o fizeram porque têm a certeza de que um dia, no futuro, farão o mesmo com alguém. Aí se vingarão de sua própria vontade de sofrer.
Felizmente, a maioria dos trotes não dá em nada, porém algumas mortes e ferimentos graves têm acontecido com uma freqüência preocupante. Coisas da estatística e da probabilidade dos eventos, e o sofrimento de famílias inteiras, que perdem um ente querido por bobagens. A quem penalizar pela violência? A Universidade? Os alunos? Os calouros? A solução seria cobrar cestas básicas? Punição para uma brincadeira. Brincadeira já se define por não possuir regras definidas. E se não há regras não pode haver punição. Proibir o trote dentro do espaço físico da Universidade só fará com que este seja praticado do lado de fora, em terra de ninguém. Conscientizar? Duvido. Nenhum daqueles aplicadores de trote que apareceram na reportagem pareceu-me sem instrução. Há muito tempo que a máxima “eduque as crianças para que não seja preciso punir os homens” perdeu sua significância. Simples. Há tanto para se educar, que já não se sabe mais o que ensinar, e o pior: COMO ensinar.
Uma coisa na reportagem, entretanto, deixou-me perplexo: o promotor entrevistado desejando mover uma ação pública contra aqueles atos, não era um idoso, um “pré na cova”, ou um pré idoso como eu, mas um jovem. Inflamado, clamando por justiça. Jovens contra jovens. A responsabilidade contra a intemperança. Na mesma faixa etária, numa mesma territorialidade. Até reacendeu minha esperança que já era por demais, temerária. Possam os jovens curar os jovens, de velhas doenças sociais.

5 de mar. de 2010

Pães

Não é receita. Embora cozinhe praticamente todos os dias da semana, não sou chef. Aprendi a me virar sozinho. Há dois anos minhas filhas, vieram morar comigo, então virei “pãe”, um pai com atributos de mãe.
Criar filhos sozinho não é tão difícil assim. As mulheres roubaram o nosso lugar? Pois então, estamos roubando o lugar delas. Há um número considerável de comunidades de pais solteiros no orkut e a com o maior número de membros, o montante ultrapassa os quatro mil. Isto possui uma significância de alta profundidade: filhos escolhendo viver com os pais, em detrimento das mães.
Não vou analisar os vetores ou intensidades que levam à essa escolha. Criar filhos será meu foco. Estamos nos acostumando à organização caseira. A praticidade masculina ainda está se adaptando com panelas, vasos sanitários e outros ítens que não constavam no nosso rol de “macho” das atividades do cotidiano. Além de consertarmos a pia, trocarmos lâmpadas, ainda temos que lavá-las e escolher, no bazar, qual lustre se ajusta melhor à sala. Já ando até com medo de passar na frente de uma loja de calçados, parar e ficar em estado zen de meditação, como é típico do mundo feminino.
Uma adolescente e uma pré-adolescente. É o que tenho. Meninas. Além dessa crônica, minha preocupação agora é com arrumação de cabelo, ouvidos limpos, unhas limpas, sem esquecer a parte estética. Isso me fez admirar mulheres de cabelo curto. São práticas. Saio para o trabalho, celular em riste, não desligo nunca. Ficam em casa enquanto estou fora. Hora e meia vem à mente se estão bem ou não. Doença. Agora tenho um termômetro. Em Riveira, cidade uruguaia que faz limite com Santana do Livramento, sendo conhecida como zona franca, ao invés da tradicional garrafa de vinho chileno, comprei um termômetro digital, tecnologia de ponta. Ah, passei batido por uma loja de sapatos, só para constar. Ainda bem. Já sei para o que servem os vários tipos de chás e “receitas da vovó”. Organizei finalmente meus documentos, pois preciso da carteirinha de saúde delas à mão, em caso de emergência. Limpeza. Sem pestanejar, limpo tudo o que encontro. Antes de ser um pãe, até as baratas reclamavam das condições domiciliares. Agora, decoração. Convivo com pôsteres de atores, atrizes, grupos e cantores que eu nem sonhava existir. Sinto-me atualizado no show business. Até ando ensaiando alguns passos de hip hop. Miley Cirus tornou-se um nome conhecido pra mim. Até gosto de algumas canções.
Intimidade. Bem, não tenho segredos com elas, não escondo nada, converso sobre tudo. Autodidaticamente aprendi sobre menstruação e fui à luta. Quando minha maior menstruou a primeira vez, foi tranqüilo. Curiosamente, falamos de generalidades. Elas não me contam se ficam ou com quem ficam. Divido-me em três: procuro ser amigo, mãe e pai, conforme a situação. Estudo. Checar temas, estudar junto, responder perguntas, discutir atitudes, abraçar derrotas, pular em cima do colchão nas vitórias. Procuro complementar a educação delas com o meu conhecimento, mas ainda não consigo dar a elas conselhos sobre calçados (não parei naquela loja ainda).
Vivo um dia de cada vez, com meu trabalho, comigo mesmo e com minhas filhas. Não é difícil. Era propaganda enganosa, na tentativa vã de dizer que as mulheres são capazes de fazer a mesma coisa que os homens, mas que a recíproca não é verdadeira. Estou vencendo a história. E quem sabe, a genética.
Ser pãe é cansativo, mas prazeroso. Adentrando o misterioso mundo feminino, tornei-me um homem melhor. Gilberto Gil que o diga. Não sou possuidor do amor de mãe, mas tenho o amor de pãe. Amor incondicional, mas que não passa a noite em claro quando a adolescente está na balada.
Daqui a dez anos voltarei a essa crônica novamente e direi a vocês se o resultado foi bom ou não. Até lá, continuarei matando um leão por dia. Mas sem parar na loja de calçados. O que continua me assustando é que ao invés de um tratado de filosofia, tive que comprar um livro de receitas culinárias. Pior de tudo, estou adorando ler.

2 de mar. de 2010

Estando Lá

Cinéfilo. Caracterizo-me como tal. Amo a sétima arte. Não importa se é cinema, dvd ou blue-ray. A forma. O conteúdo. O todo. Não há filme que tenha assistido que não possua algum tipo de reflexão ou conhecimento específico. O que um dia foi “ficção científica” hoje pode ser taxado de “ciência possível”. Rio muito da lembrança de ver Kirk comunicando-se com a Enterprise por meio de um transcoder e vinte anos depois me comunicando com a nave-mãe através de um telefone celular. A ficção perde o encanto quando vira hábito.
Existe um filme, meu preferido, dentre todos que já assisti nos meus quarenta e lá vai pedrada. Na minha opinião, o mais inteligente que assisti, e com 0,00023% de efeitos especiais em relação a Avatar. O nome inglês do filme, em detrimento à versão portuguesa do título, já diz tudo: “Being There”. Simplificando: estar no lugar certo na hora exata. Isso, claro, tendo como centralidade e objetivo último da vida a fama e o poder. Nesse ponto, o filme é de um extremismo incrível. Do nada ao tudo. E como esse filme é do final da década de 1970, peço licença para analisá-lo. Azar o seu se não o viu ainda. E não me peça para cantar a trilha sonora.
Chance. Esse é o nome do protagonista, vivido por Peter Sellers. O nome também diz tudo. No literal do inglês, acaso. Seu único conhecimento? Jardinagem, nada mais. Nunca saiu de casa. Ironia da vida moderna. Toda sua vida se passou no jardim da casa onde trabalhava. Chance já aparece adulto no filme. Uma única comunicação com o mundo exterior: a televisão movida a controle remoto sem fio (novidade tecnológica). Mudança drástica. A morte do old man, dono da casa. Chance vê-se obrigado a sair de casa, onde as coisas começam a acontecer. Um único momento, um kairós, o eterno momento presente, muda toda sua vida. Devido a um acidente, Chance acaba na casa de um magnata norte-americano, amigo íntimo do presidente da nação. Nessa cena, o nome do filme ganha toda sua significação. Ele estava lá.
Vivemos numa virtualidade de metáforas, e dentro delas, vivemos de cargos e o status social que isso nos proporciona. Ser o chefe do setor de Abastecimento Logístico de uma empresa. Nome chique. Só com esse nome, sinto vontade de ir trabalhar engravatado. Mero idealismo. Ao chegar no setor de tão garboso nome, deparo-me com o Almoxarifado, no qual sou o único funcionário. Chefe de mim mesmo. Mas o que importa é o que está na carteira. Dentro dessa lógica e por um erro de interpretação, o nome Chance acaba ganhando sua versão chique: Chauncey Garden. Pomposo demais para um jardineiro, mas até aí ninguém sabia que ele o era.
Ben, seu novo amigo, podre de rico, interpreta mal sua história à mesa do jantar e o tem como um empresário falido, vítima de impostos e da selvageria do sistema. Ben encontra-se com o presidente, Chance participa. Uma interpretação metafórica da prática da jardinagem faz com que o presidente o cite em um dos seus discursos. Novamente, o título do filme ganha significação. Chauncey Garden, estava lá.
Tudo no filme é visto como metáfora para análises sobre a situação de um país no campo da economia. Ao ser citado, Chance vira alvo do poder virtual do mundo moderno: a mídia.
Jornais. Entrevista na tevê. Frases curtas, perguntas curtas, todas interpretadas como ironia pura ou como uma profunda análise da situação. Peter Sellers, genialmente, transmite uma aura mesclada de tranqüilidade, convicção e sinceridade, agravado por seu sorriso bobo, de quem está apaixonado e no mundo da lua. E o pior: não possui um passado. É um Zé ninguém, mistério total.
Ben à beira da morte, apaixona-se pela candura de Chance, tornando sua jornada final um fardo menos pesado de se carregar. Tranqüiliza-se com o fato de confiar a Chance a continuidade do seu legado, inclusive de sua mulher, Eve. No momento crucial do filme, ironizando o acaso, decide morrer por conta própria.
No cúmulo da bizarrice, apenas o espectador e o médico de Ben sabem que Chance não passa de um jardineiro. Essa potência de Chance, de ser um total desconhecido no meio do poder é a força que o leva a ser considerado como um nome à sucessão presidencial do país mais poderoso do mundo (na época, claro...hoje, bem...). Do nada ao tudo. Para Chance, de um jardim a outro. Penso que isto explica a versão em português do filme: Muito Além do Jardim.
Chance é um ser pueril. Fala o que sente, tendendo a natural visão otimista das coisas e de maneira suavemente convicta. Sem rodeios. Olhar lânguido, que nos faz querer abraçá-lo efusivamente. De uma hora para outra transformou-se em Chauncey, porém permaneceu imaculado pelas forças agressivas de um mundo hostil. Uma linha de fuga num território de linhas estriadas.
Essa é a magia da sétima arte. A prática da utopia. Luto com força titânica para ser um Chance (embora o desejo do Chauncey seja freqüente). Um mundo de Chaunceys, metafórico. Conscientemente ou não, esperamos também por uma chance, por um “estar lá”. Quem já esteve lá sabe muito bem disso.
Procure assistir o filme e poste algum comentário sobre essa crônica. Ficarei feliz. Quem sabe esse não é o meu jeito de “estar lá”? Se não assistir, deixo essa crônica ao acaso.

Obs.: Essa crônica foi uma feliz sugestão do professor Alfredo, meu sincero amigo e irmão em todos os universos paralelos. A ele, minha homenagem.