29 de abr. de 2010

Dualismos de Recorrência

O professor e escritor Donaldo Schüller, a quem presto homenagem neste momento, deu, certa vez, uma aula maravilhosa sobre o que é o mito: “Eu vejo a rosa, mas não a entendo; não sei de onde ela vem, e qual o propósito dela estar ali. Então eu crio uma história de como ela apareceu e qual o sentido dela existir. Criei o mito da rosa”. Os mitos são gerados pelas palavras e palavras que geram mitos acabam se tornando elas mesmas, o próprio mito. É o que acontece com o dualismo direita e esquerda na política.
Peço perdão aos meus leitores e seguidores, mas hoje, nesta crônica darei aula de OSPB. Ou como deveria ser uma aula de organização social e política brasileira. Gostaria de desconstruir estes termos duais, que não são nem de longe, contrários entre si. Afinal, este é um ano de eleição, e se ouvirão por todo o país os referidos termos.
Comecemos pelas palavras e a etimologia moral-religiosa que elas carregam. “Não veja a tua esquerda o que faz a tua direita”. Eufemismo. Claro que, levado ao pé da letra, subjuga a esquerda à superioridade da direita. Sinistro. Esta é a palavra para “esquerdo” no italiano. Destro, adestrar; tornar direito. E aí temos a mão certa, a direita. Os canhotos são sinistros. Precisam de tudo diferente. Os destros são direitos. O curso de direito, para se aprender como se é direito (ou disciplinado) aos olhos do poder. Então, no dualismo bem-mal, a esquerda é a que sofre o pênalti. Ainda que isto não seja mais palavra de ordem na atualidade, ainda se usa implicitamente nos discursos políticos. Minha professora de primeira série batia na minha mão quando eu pegava o lápis com a esquerda. Mas devo agradecer a ela. Graças a isto, sou ambidestro. Afinal, sou músico e músico não pode ter essas frescuras de destro e canhoto. Uso as duas mãos para sobreviver.
Direita e esquerda na política são usadas recentemente. Uma coisa do início do século XX. Como contraponto ao capitalismo industrial e financeiro, predador que fazia muitas vítimas, surgiu o socialismo científico como chamado na época. Ser socialista num mundo de lucros e acumulação de capital não era, realmente, uma coisa direita. Pensar que os seres humanos poderiam viver muito bem sem classes sociais era um disparate. Então, esse disparate fora visto como esquerda. Algo sinistro. Bem, na Rússia, esse sinistro virou situação. Tomou as rédeas, ainda que seus líderes não seguissem a contento toda cartilha dos seus criadores. Naturalmente, criou-se o dualismo direita-esquerda para designar capitalismo-socialismo.
Ainda que não houvesse uma real melhora no povo russo, algumas mudanças tornaram-se visíveis e eram usadas como propaganda pelos partidos socialistas mundo afora. Bem, a União Soviética foi a única que não se prejudicou com a crise de 1929. O welfare state de Roosevelt me pareceu ser uma “liberdade poética” de práticas socialistas dentro do mundo capitalista. O Estado retomando as rédeas da economia e criando estratégias para evitar uma convulsão social. Não muito diferente do neoliberalismo samba-tango-salsa atual. Na década de 1950, no pós-guerra, com o mundo dividido, é que esse dualismo atingiu o clímax. E aí que começou a caça às bruxas.
Confunde-se muito direita com situação e esquerda com oposição. Situação e oposição sempre existiram, esquerda e direita, na acepção política dos termos é que não existem mais, ao meu ver é claro. Os partidos que ainda conservam uma atitude bolchevique têm uma representatividade pouco significativa. E não são contraponto nem para eles mesmos. O socialismo soviético ruiu muito mais pelos seus vetores internos do que necessariamente pela sua competição externa com o capitalismo. Fato que a Rússia ainda é uma potência bélica que mete medo no tio Sam. E o pior: virou uma das maiores vendedoras de armas para o mundo dos poderosos que governam paralelamente: o tráfico e o fundamentalismo religioso. O PT autodenominou-se esquerda quando surgiu no fim da década de 1970. Alguns líderes postavam-se como seguidores de Lênin, Trotski ou Mao. Camisetas do Guevara era um aviso: sou de esquerda. Hoje, é cult aquele rosto do Che chapadão olhando pro vazio. Perdeu a significação. Foi o PT virar situação logo depois das torres gêmeas caírem, que já tratou de memorizar a cartilha neoliberal. Mas sem perder o ritmo latino.
Não há esquerda, ao menos no significado dado no dualismo da Guerra Fria. Há sim, contrapontos, como na música, e esses contrapontos, habitam todos o mesmo território, constituem a mesma harmonia de uma melodia dominante, a do mercado global, numa era de superprodução. Quando algum político vier com essa fórmula pronta dualista de bem e mal, certo e errado para direita e esquerda, não caia nesse papo. É que provavelmente ele ainda não se atualizou. Quem sabe até, para não ser injusto, ele tenha criado um contraponto atonal para a situação vigente. De resto, o discurso será sempre o mesmo: alimentação, saúde, habitação e educação com soluções mirabolantes e nomes de pessoas, não programas de governo. Já que temos que votar, que o façamos com a consciência de que o mundo é outro, sem dualismos de direita e esquerda. Sem mitos nas urnas.

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