16 de dez. de 2010

Literatura Caça Níquel

Pode ser sim. Preconceito. Não descarto a possibilidade. Quarentões desejantes que a recém passaram da andropausa, carregados de lirismo e ranços literários, não aceitam uma literatura mercadológica do tipo “público-alvo”.
Mas ela está aí e carece de maiores explicações. Ainda que um Hamlet tenha maior grau de profundidade, ele anda perdendo feio para lobisomens que teimam em proteger sonsas desengonçadas de vampiros brilhantes, ainda que elas não tenham essa necessidade.
Meu avô, grande amante da literatura mundial vivia me dizendo que os grandes clássicos nunca morreriam, estariam sempre vivos e presentes nas mentes joviais. Mas, em sua crença inocente, ele não contava com a revolução moderna: o trinômio livro-filme-continuações. Uma mina de ouro quase inesgotável. Atualmente, o número de jovens que leem Machado, Alighieri, Cervantes e Sófocles é ínfimo. Estudantes dos cursos de Letras. Talvez, porque resenhas e resumos proliferam na internet feito culturas de bactérias enlouquecidas.
Como se cria uma literatura caça níquel? A receita é simples. Adereços e temperos ficam a cargo dos regionalismos. Aposto que um grande número de praticantes da Wicca desdenhem de alguns aspectos de Hogwarts.
Para se criar uma boa literatura caça níquel basta voltar uns mil anos na história (da Europa, lógico) e criar um mundo fantástico cheio de magia e mistérios. O período medieval no entanto caracteriza-se pela superstição e pelo medo do desconhecido. Loucos e histéricas eram endemoninhadas; adoradoras da natureza eram bruxas que se alimentavam de crianças não batizadas. Mas, esse mundo maravilhoso onde a mitologia vira escrava de uma mente designer é atemporal, incorporal. Além do que o medievalismo presente neste tipo de literatura é somente o pano de fundo, porque os conflitos existenciais são mais do que modernos. Adolescentes e crianças não tinham vez nenhuma no período medieval. Aqui, na LCN eles são heróis.
Falando em herói, acabou-se a ditadura do indivíduo. Não é mais o Wasp gostosão, mas um tipo o mais globalizado o possível, tipo um caucasiano com porte afro que viva sob alguma filosofia oriental. Aí é batata. Vira sucesso mundial.
As mulheres são heroínas. Na idade Média nem alma elas tinham. Hoje possuem QI elevadíssimo e tiram os outros heróis das piores enrascadas. São mais espertas e cruéis que os vilões. Ah! Os vilões. Saudosos Boris Karloff e Christopher Lee, que aterrorizavam só com o olhar. O mal era o medo da morte, ou pior, o medo de ter a alma roubada. Hoje é fashion ter a vida eterna sem sangue, é lógico.
Um quesito importantíssimo para a literatura caça níquel é a progressão etária. Os protagonistas das histórias têm de amadurecer junto com o público-alvo. Claro que isso não deve influenciar de modo algum a centralidade das histórias que tem uma semelhança com games: acabar com o Senhor das Trevas no final e passar níveis. Vencer o chefão, destruir o mal. E nós, “trouxas” comuns, assistimos extasiados as façanhas dos escolhidos.
Escolhidos. Desde Star Wars esse messianismo domina este tipo de literatura, Eles têm a Revelação. Melhor. Eles SÃO a Revelação. Mas isto sempre existiu. O que tem de novo nesse negócio todo é que o escolhido é igual ao seu inimigo. Seu oposto é apenas um outro ego, voltado para o mal. A força é a mesma. Seu diferencial é somente uma questão de maior ou menor luminosidade.
Por fim, o romance. Não há LCN sem o amor. Não o amor piegas, de dominação e mostras de força, mas o amor conflitado, que amadurece com o tempo, sem contudo perder a fantasia teen.
Entre guerreiros intergalácticos e bruxos bretões não há disparidades. Todos sofrem dos mesmos males do espírito homo sapiens. A LCN só o deixará de sê-lo quando bruxos conseguirem realizar a magia do salário durar até o fim do mês e os guerreiros do lado luminoso da força impedir pais estressados de descontarem suas frustrações nos filhos. E que a FORÇA das blockbusters e best sellers esteja com você.

22 de nov. de 2010

Velhos Tempos, Novos Tempos

Velhos Tempos, Novos Tempos

Quem possui mais de 40 anos vai se lembrar dos antigos jograis que éramos democraticamente obrigados a declamar em homenagem a algum herói do passado, ou eventos como dia do Soldado ou Natal. Assim, nós ganhávamos pontos com os pais e a professora, pontos com a direção. E nós, os escolhidos, pagávamos um mico do tamanho do King Kong, em frente aos colegas.
Jograis eram líricos, positivistas, exaltavam uma pessoa ou um evento, levando os espectadores às lágrimas mais sinceras. Isso sem falar nos intermináveis ensaios após as aulas. Sinceramente, caro leitor de semelhante faixa etária, não sei o que era pior: se desfilar no sete de setembro ou declamar jograis em dias festivos.
A fim de espantar os fantasmas, criei humildemente um jogral de Natal, moderno, em consonância com o processo ensino-aprendizagem atual, com clareza, questionamento e criticidade, como querem as beneméritas Escolas de minha capital gaúcha. Espero que gostem. Aos professores, dou minha autorização para ensaiá-los com os alunos (e assim, ganhar pontos com a direção):

Jogral de Natal

1. O que é o Natal?
Todos: Papai Noel?
2. Não tem Mamãe Noel?
Todos: Não sei. Tem?
3. Sim, porque se tem papai Noel, tem que ter mamãe Noel. Ninguém é filho de chocadeira.
Todos: Como assim?
4. Papai Noel tem milhares de duendes trabalhando pra ele.
Todos: São filhos?
5. Só pode ser. E é muito presente pra fazer. Um pra cada duende.
Todos: E um pra cada criança?
1. E ele não se esquece de ninguém.
Todos: NÃO?
2. Ele já tá bem velhinho. Pode ter Alzheimer.
Todos: Então ele esquece.
3. É, pode ser, mas todas crianças ganham brinquedos
Todos: Então, quem é que dá?
4. O Papai Noel, ora. Os pais compram os presentes e pedem que ele os entregue.
Todos: Ah, entendi. Mas de onde vem tudo isto?
5. É uma tradição. Existe há muito tempo.
Todos: Como começou?
1. Um senhor, fabricava presentes e os doava às crianças muito pobres.
Todos: Ah, e a árvore de Natal?
2. Servia pra pendurar as maçãs carameladas que eram comidas no Natal.
Todos: Por isso as bolinhas?
3. Exatamente. E as bengalas eram doces também
Todos: E as meias na lareira?
4. Era onde o Papai Noel colocava os presentes de cada criança.
Todos: No Brasil, as casas não têm lareira, nem chaminé.
5. Papai Noel manda por Sedex. Ou por e mail
Todos: Por E mail?
1. Sim, uai. Cartão virtual também é presente.
Todos: Papai Noel Hi-Tech
2. Tem cada mensagem... e cada mamãe noeel... (leva um tapa)
Todos: E os presentes? De onde vêm?
3. É uma tradição.
Todos: explica, né?
4. Os três reis magos. Vieram dar presentes.
Todos: Ao Papai Noel? (todos riem)
5. Não. Papai Noel dá presentes, ele não recebe.
Todos: Deve ser um velhinho triste.
1. Deixa pra lá. Voltemos aos presentes.
Todos: Vamos ganhar presentes?
2. Não, só no Natal
Todos: Aaaaaaaaaaaaaaaah
3. E eu que me matei pra decorar essa... (leva um tapa)
Todos: Quem são os três Reis magos?
4. São aqueles que presentearam um nenê. Devia ser importante.
Todos: vai ver era o Bisavô do Papai Noel.
5. Eles vieram no Natal?
Todos: só pode, uai.
1. Não. Eles vieram no dia 6 de janeiro....logo depois.
Todos: Então, por que recebemos presentes no Natal e não no dia 6 de janeiro?
2. Porque os shoppings têm que fechar o ano no saldo positivo.
Todos: Papai Noel compra presentes nos Shoppings?
3. Ué? Tudo o que é shopping tem Papai Noel. E se pagar 20 reais, sai com uma foto tua e dele
Todos: Papai Noel ganha dinheiro?
4. Claro, meu! De alguma coisa ele tem que viver.
Todos: Mas papai Noel não dava os presentes?
5. Distribuição igual pra todos é comunismo
Todos: Culpa do PT!
1. Não. Nada a ver. Papai Noel só é generoso.
Todos: o que é ser generoso?
2. É dar uma coisa que se tem, sem querer nada em troca. É dando que se recebe. (Silêncio desconfortável, olham para o 2 com olhar estranho)
Todos: Por que tem neve no Natal?
3. Nunca tinha pensado nisso. No Brasil não tem neve.
Todos: Papai Noel usa uma roupa de inverno.
4. Aqui no Brasil é verão.
Todos: Papai Noel de Bermuda?
5. E sem barba. É muito quente.
Todos: Papai Noel é de onde?
1. Do Pólo Norte.
Todos: Aaaaaaaaaaah, por isso a roupa
2. Por isso as renas.
Todos: Renas?
3. Sim. Levam o trenó do Papai Noel pra tudo o que é lugar.
Todos: No Brasil não tem Rena.
4. Tem veados (leva um tapa)
Todos (menos o 4): Olha os nomes!
5. Os presentes dos magos foram ouro, incenso e mirra.
Todos: que isso?
1. Eu não quero ouro. Quero um Playstation três.
Todos: Nós queremos comida!
2. Eu pedi um laptop pra ele.
Todos: Papai Noel Hi Tech 2, a Missão
3. Eu pedi uma boneca.
Todos: Boneca? UUUuuuuurgh
4. Eu pedi a paz universal
Todos: ele dá isso também?
5. Isso não tem no shopping. E se tiver deve ser muito caro.
Todos: Mas Papai Noel não atende a todos os pedidos?
1. Ele tem Alzheimer. Esqueceu?
Todos: Ah, é! Também temos.
2. Pra quem os reis magos deram o presente?
Todos: é mesmo? Pra quem?
3. Já foi dito. Prum nenê.
Todos: Que nenê?
4. Ah, sei lá....ele não aparece em shoppings.
Todos: É muito feio?
5. É barbudo.
Todos: Nenê barbudo?
1. Dizem que ele foi o primeiro presente.
Todos: Nenê barbudo de presente?
2. Uma irmã minha tem uma amiga que saiu duas vezes com o namorado e ganhou um nenê de presente.
Todos (menos o 2): Você não sabe nada da vida!
3. Bem, o nenê é quem?
Todos: não sabemos. Como saber?
4. Pesquisando no Google.
Todos: muito demorado
5. Tive uma idéia!
Todos (menos o 5): Qual?
5.Vamos perguntar ao público.
Todos: Ótimo.
Todos: Qual é o nome do Nenê?
Público: zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz.....

16 de nov. de 2010

Professores X Educadores

Sob o ponto de vista da história, meio século não é muito tempo para mudanças sociais drásticas. Não era. Agora...
Tabuada. Meu bicho papão particular. Todos os dias ele me assombrava. Era onipresente. Habitava tanto a escola quanto o meu quarto alimentando-se de meus pueris e tenros neurônios. Sonhava com a tabuada tentando me alcançar enquanto eu corria, desesperado, sem sair do lugar. Hoje, não saberia afirmar, mas penso que devo a esse monstro minha habilidade de fazer cálculos simples de cabeça, em detrimento a um fato que me deixou extasiado. Eu vi, ninguém me contou: uma professora de matemática em frente a mim, indo atrás de uma calculadora para fazer uma soma de quatro fatores.Todos, dezenas. Ela, bem mais nova do que eu, não convivera com o mesmo monstro em sua infância.
Na pré-história (anos setenta, quando a informática era privilégio de poucos), os professores ensinavam? Bem, há que se conceituar o termo ensinar (pedagogos adoram conceitos). E isto aqui é uma crônica, não um ensaio. Como a força social dominante era o mercado de trabalho, ensinavam sim, numa época onde o sistema fordista era o modus vivendi na brasilândia. Usava-se o processo ensino-aprendizagem como simples ferramenta de eficácia. Não era hábito de um professor ensinar regras de comportamento social. Isto era obrigação da família.
O que a era da informação fez com o ensino? Tornou o professor um instrumento secundário. A alienação da revolução técnico-científica alcançando esta área profissional. E segundo a teoria da evolução, as mutações aumentam exponencialmente quando algum vetor ambiental modifica-se rapidamente. Animal em extinção em longo prazo. Basta que a tecnologia crie uma sistemática própria e eficaz e as empresas da educação farão com que o professor (aquele que professa), que evoluiu para educador (aquele que toma tiros, cadeiradas, manda sentar direito e “resgata” valores que nem ele segue mais) venha evoluir para “facilitador”(aquele que adestra o aluno para lidar com a parafernália digital). Não é negativismo. É prognóstico.
Vivi uma situação muito curiosa nos anos oitenta. No mesmo dia, duas afirmações totalmente opostas: pela manhã, numa reunião pedagógica de escola confessional, daquelas que tem até freira tocando violão, com fins motivacionais (= tortura), foi dito pela coordenadora pedagógica que o profissional da educação é, antes de tudo, um educador (termo novo para a época). Quando indagada das funções específicas de um educador, ela repetiu o que havia dito sobre ser professor, ou seja, mudam-se as moscas... Na tarde daquele mesmo dia, na faculdade, o professor de Idade Média brada, com sua voz tonitruante, que o professor não educa e sim, informa e esta informação pode ser usada com total liberdade pelo aluno. Anos oitenta. Época difícil. Era jovem e influenciável. Vivia entre a cruz de ser um “corpo dócil” como operário da educação e a espada do mundinho utópico das universidades. A definição de educador na realidade atual e habitual é a seguinte: além das mil avaliações a serem corrigidas, pareceres, projetos multidisciplinares e uma burocracia monstra que exime a Escola do óbvio (que ela não é mais o único veículo de informação perdendo o monopólio como construtora de opiniões), ainda suportar jovens armados de i pods, celulares e outras armas de fuga. Robótica, música, informática, línguas, dança e outras atividades extra-curriculares ganhando espaço e tirando tempo precioso da criança, esse “pequeno adulto preguiçoso que prefere receber um carinho a aprofundar-se no espanhol”... Fica doente, mas “na realidade” quer apenas chamar a atenção.
O meio universitário até tenta preparar melhor o professor do século XXI, mas precisaria de mais quatro anos de curso. Um professor de ensino médio, para ser eficiente, além do domínio do conteúdo do que vai ensinar, precisa também dominar conhecimentos como didática de ensino, comportamento do adolescente, técnicas de envolvimento e, se quiser ser adorado, uma pitadinha de neurolinguística e estar atualizado com a “linguagem do aluno”.
Ser professor sempre foi, antes de tudo, uma arte, um kung fu, no sentido mais profundo do termo. E embora as máquinas venham a substituir uma classe enfraquecida e combalida por problemas estruturais cujas soluções jazem no plano das utopias, educar não é formar, nem mais informar, mas questionar, compartilhando com os aprendizes as mais variadas formas de pensamento. Mas, mexer nisso significa fuçar numa colméia de abelhas africanas... E, levante o dedo quem aí quer arriscar o couro pela educação...

29 de out. de 2010

Coligômenas

A filosofia, segundo Gilles Deleuze, tem como função primordial, a criação de conceitos. Humildemente então, peço licença para o saudável exercício da mente: filosofar, criando conceitos.
A década de 1980 foi vital para minha maturidade cultural. Percorri-a desde o início, com o advento da ideologia das esquerdas até seu final, que culminou com a entrada do neoliberalismo na brasilândia. E dê-lhe PC.
O binarismo esquerda-direita era bem definido. Uma direita atrelada à classe dominante e às grandes corporações. Antigas relações com as igrejas e o tradicionalismo populista. Uma esquerda, oposição ferrenha, uma ligação com o socialismo maoísta ou leninista. A tão cantada revolução socialista: fosse através da luta armada, fosse através da militância panfletária, pacífica. Grandes esperanças.
Meu saudosismo reporta à cavalos de batalha dantes esquecidos: a reforma agrária, a liberação do aborto, a nacionalização das transnacionais, etc. As campanhas da esquerda dos anos oitenta cantava Cazuza, Paralamas. Os de hoje cantam samba e tchê music.
A direita clamava pela manutenção de um estado baseado em antigos valores éticos. Até hoje a maioria das escolas particulares, depositárias dos filhos dos filhos da classe que dominava, tentam desesperadamente “resgatar” esses valores. O resultado é fantástico e mereceria um filme: professores extenuados e alunos com i-pods.
Bem, como na brasilândia tudo é uma questão de jeitinho, deu-se, para a derrocada do socialismo no mundo e para a ascensão do neoliberalismo, um jeitinho bem brasileiro de se fazer política, batizado de Coligômena. Não é um ser, uma coisa; nada palpável. Coligômena é um sistema, uma estrutura habitando dentro de conjunturas. Um sistema ao mesmo tempo fechado e totalmente flexível, adaptado à qualquer situação.
A coligômena tem por princípio básico a enjambração de ideias ligeiramente parecidas com a omissão e releitura de práticas e crenças opostas. Uma capitalização do social e uma socialização do capital. A coligômena, característica do tropical tupiniquim percebe-se num mundo que transcende ao político, vindo a habitar no plano das conveniências do cotidiano.
Coligômena é a melhor solução para velhos desafetos do passado. Simplesmente se eliminam memórias negativas, de distanciamento, e passa-se a exaltar pontos de convergências. E se eles não existirem, bem, “o nosso amor a gente inventa”.
A coligômena tornou os debates na tevê mais leves. Os tops da cadeia alimentar digladiando-se e os outros analisando a situação para ver se sobra um pedacinho de ministério para devorar. Debates como o de 1989 marcaram o contraponto dos atuais. Acirrados, intensos, uma biodiversidade de soluções para um país adormecido. A diferença para o hoje é que aqueles realmente queriam acordá-lo, apenas discutiam a forma e o som do despertador. Os de hoje, com os discursos da continuidade e o do “plus a mais”, esconderam o projeto do despertador, substituindo-o por um poderoso calmante, um sonífero que concede os mais lindos sonhos, o de um país respeitado pelo resto do mundo, em constante crescimento econômico (mas não social), livre da violência... Parafraseando Huxley, um soma.
A coligômena veio para ficar e completar com mais uma importante peça o puzzle do nosso Zeitgeist. Nunca se sabe. Os grandes rivais do passado tornar-se-ão os aliados de amanhã e os conciliadores do hoje. E a coligômena será a palavra de ordem de nossa existência. Afinal, sempre fomos da turma do “deixa disso”. Conceitos fazem refletir e principalmente, desejar. E, segundo Deleuze, somos máquinas desejantes. E tudo se faz pelo poder.




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8 de out. de 2010

Pulga na Orelha

Bichos espertos. Ao longo dos tempos desenvolveram a habilidade de se deslocar rapidamente através de saltos. Difícil para um ser humano, lento e desajeitado (para os padrões pulgueanos), conseguir capturá-la sem pegá-la desprevenida.
Orelha. Mais especificamente, pavilhão auricular. Amplifica e, antigamente, direcionava-se para o lugar de onde o som vinha. Alguns ainda conseguem mexer as orelhas. Vide, por exemplo, Mr. Bean.
A expressão diz tudo o que quer dizer. Não é fácil apanhar uma pulga atrás da orelha. Carne macia onde torna-se fácil colher sangue, alimento vital do nobre inseto. Ela ficará ali, incomodando, perturbando.
Essa expressão é largamente usada quando nos deparamos com algo que ouvimos dito de maneira convicta, como verdade única e absoluta. Ficamos ali, travados, tentando achar argumentos tanto para acreditar naquilo, quanto para refutar. Não adianta. Quanto mais tentamos nos resignar ao que foi apresentado, mais a pulguinha suga o sangue da nossa desconfiança.
Uma coisa na organização eleitoral brasileira tem deixado alguns brasileiros com uma pulga atrás da orelha: a urna eletrônica. Propagandeada como o progresso tecnológico do processo eleitoral, pelo jeito ela veio pra ficar. E como não vivemos numa democracia, e sim numa república onde a única liberdade é a obrigatoriedade de ir ao local de votação (podemos não votar, escolhendo branco ou nulo), não fomos consultados se ela fica ou não. Foi simplesmente empurrada goela abaixo. Mais uma pulga...
Divulgam em altos brados a segurança oferecida por tal artefato. O curioso é que na tecnologia de ponta, tudo o que aparece de novo no mercado é prontamente abarcado, sendo copiado, modificado e aperfeiçoado. Poucos são os países que compraram a ideia da urna eletrônica. Outros a abandonaram e retornaram ao papel. Países altamente desenvolvidos não migraram para a urna eletrônica. Na brasilândia da corrupção estrutural e conjuntural, nem o software nem o hardware escapam da maracutaia. Sua orelha está coçando? São as pulgas. Muitas.
Urna eletrônica computa os votos de maneira individual? Se o faz, então não é mais voto secreto. Já vou avisando: anulo meu voto. Urna é inviolável? Quem disse? Alguém do governo, eleito através dela? Mais pulgas, poucas orelhas.
Sob o pressuposto da democracia, deveríamos ter o direito de “ver” os votos da tal urna. De acompanhar todos os veículos que as levam e trazem. Se a tecnologia criou uma urna eletrônica inviolável, pode muito bem criar mecanismos para tal.
Asterix, o gaulês, no episódio “O Combate dos Chefes”. Nele, há um relato muito curioso. Uma tribo promovia eleições, todos votavam, e quando as urnas estavam cheias, eram jogadas ao mar e o mais forte assumia a liderança. Absurdo. Mas a história pode achar hilária a crença na inviolabilidade da urna eletrônica. Lutero também desdenhou da infalibilidade do papa.
Nem sempre a tecnologia tem a melhor solução para os problemas. Pulgas coçam . Elas necessitam sugar sangue para viver e nós… precisamos refletir para duvidar.


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13 de set. de 2010

Fogo

“O amor é fogo que arde sem consumir”. Camões. Quando amamos, apaixonadamente, entregamo-nos totalmente. Ficamos cegos. Nosso objeto de amor passa a resumir nossa vida. Uma gostosa prisão. Um porto seguro.
O amor não é em si um sentimento, mas um estado motivacional. Sendo assim, pode-se amar qualquer coisa, e com intensidades variadas. Um casal que ama seu cão. Gasta com ele mais do que gastaria com uma criança. Um homem que ama seu partido. Uma mulher que ama seu trabalho. Um menino que ama seu computador. Uma menina que ama sua máquina digital.
Até onde o amor e a entrega são socialmente saudáveis? Até que ponto nosso objeto de amor nos leva às loucuras razoáveis, aquelas que não incomodam ninguém?
Fanatismo. A conseqüência última do binarismo exacerbado do bem e do mal. Aquele maniqueísmo que se agregou ao pensamento ocidental através do catolicismo primitivo. Um olhar motivado pelo amor cego a um tipo específico de racionalidade que exclui toda e qualquer alternativa discordante. O velho culto ao absoluto.
Na minha infância, regada a jogos de futebol na calçada e “pegas” de bicicleta intermináveis, recebi uma educação moral considerada rígida, para os padrões educacionais modernos. Heranças judaico-cristãs tão fortes que minha adolescência teve como mote a quebra impulsiva de muitos valores. Mas, não foi a Torá nem o Novo Testamento que influenciaram meu pensamento ético. Um livro pequeno, do pseudônimo Malba Tahan, foi uma potência. “Lendas de Teijuã”. Um livro repleto de histórias das quais algumas até hoje sei praticamente de cor. Conto-as para minhas filhas sempre que a situação assim o exige. E são de ordem islâmica. Meu primeiro contato com uma forma de enxergar a vida diferente da que eu havia aprendido. Hoje ela é parte integrante do meu caráter e esteio nos períodos de resiliência que a vida nos impõe.
A religião, pelos padrões sociais, também é considerada produtora de pessoas de bem. Atualmente porém, isso habita no plano da estereotipia. A alcunha “reverendo” é quase mágica. No entanto, os paradigmas mundiais mudaram muito rapidamente para que essas pessoas de bem pudessem acompanhá-las.
E nesse 11 de setembro quiseram queimar o Corão nos EUA. O prato frio da “vingança”. Repúdio ao atentado, que tal como o Vietnã, permanece engasgado nas gargantas norte-americanas. Triste sim, tragédia. Um grande número de pessoas carregará para sempre o trauma da perda. O fanatismo. O amor exacerbado aos símbolos, aos virtuais. E ainda pior do que a violência física é a violência simbólica, subliminar. É ela a grande potência que alimenta o ódio e incita, mais violência física. Queimar um livro sagrado para milhões é transportar pessoas de bem ao plano do ódio. Ódio sim, aquela curva sinuosa depois da esquina do amor. O que diriam se Gandhi tivesse queimado a Bíblia? No início da guerra do Vietnã um monge budista queimou o próprio corpo em repúdio à guerra. Não houve queima de livros sagrados como espetáculos de mídia.
O fogo da paixão cega arde e clama por sacrifícios. Espero que homens de bem não levem isto muito a sério, e que amem intensamente… de olhos abertos e ouvidos críticos... Atentos. Queimar livros. Prática antiga, que só alimentou o fogo da vingança.

13 de ago. de 2010

Marketing Candidato

Sobre a mesa, um exemplar do periódico mais famoso da cidade. Organização simétrica. No pano de fundo, uma estante cheia de livros, alguns ainda virgens. Ambiente que respira cultura e sofisticação. Roupa da moda, mas sem perder a velha formalidade dos ares de doutor ou doutora. Maquiagem impecável, voz impostada, linguagem corporal de liderança e determinação. Na linguagem verbal, erudição e, ao mesmo tempo, identificação com o popular. Toda uma neurolinguística voltada para assuntos cruciais, que voltam à baila de quatro em quatro anos, mas com profundo envolvimento social. O mundo digital da imagem-ícone, aquela que diz tudo… Com direito a sorriso sincero na foto.
Incrível como uma força reativa pode desconstruir toda uma “estrutura” montada para vender uma imagem de político responsável. Pena que é uma única propaganda que parafraseia uma entrevista de emprego. Única, mas criativa. Se os nativos votantes da brasilândia prestarem a devida atenção, o resultado das eleições podem surpreender.
Marketing eleitoral pode ser comparado a um currículum vitae: praticamente não se vê ninguém descrevendo suas inépcias, seus medos, suas inseguranças no trabalho. Assim também são os horóscopos. Todos têm maravilhosas virtudes e os defeitos… Bem, quanto aos defeitos é bom ter cuidado. E só. Isso, dos defeitos, descobre-se mais tarde, o que para uma empresa privada não é um fim do mundo, mas para um cargo político conquistado pelo voto, é tarde demais.
Candidato que recorre a técnicas apuradas de marketing pessoal, ou não tem claro o que irá fazer com o programa de seu partido, ou se aproveita da cultura brasilandesca de que se vota numa imagem, num virtual, e não numa proposta séria de gestão pública. E como não existe o fundo do poço, as duas alternativas podem coexistir juntas. A história está aí para mostrar isto.
O descaso da maioria da população com a vida política, não aquela da carreira, do rabo preso, da maracutaia, mas o da atuação, da fiscalização, no sentido maior da “res publica” facilita em muito esse marketing emburrecedor.
O marketing vende, facilita, agiliza e busca uma maior eficácia no atendimento e prestação de serviços. Ele, enquanto conjunto de técnicas auxilia um mundo centrado na tecnologia, produção e comércio. A partir de parâmetros sociais de boa imagem e apresentação pessoal, o marketing “vende” a pessoa, projeta o indivíduo ao mundo da credibilidade. O político, representante da coletividade, não precisa vender nada, apenas gerir, administrar, defender ideias, princípios e, dentro do processo democrático, evitar os abusos da elite. Para isto, um programa cheio de projetos bem definidos para o bem social, é o melhor marketing eleitoral.
Político que recorre a marqueteiros profissionais é semelhante a banco privado que vive fazendo comercial de tevê. “E a poupança Bamerindus continua numa boa”. Fechou, quebrou. Se os eleitores que votaram no candidato produzido pelo marketing acompanhassem seus passos, poderiam constatar se essa crônica traduz a realidade.
O pior de tudo é que nós, consumidores de imagens políticas, nem podemos reclamar à AGERT por propaganda enganosa. O ser político ainda é mitológico na brasilândia, mas isso está mudando. Até os Estados Unidos quebraram o mito do Vaticano e indiciaram os padres acusados de pedofilia. Final dos tempos? Não. Começo de outros.

6 de ago. de 2010

Pais

Desde longa data os arautos da desgraça vêm anunciando o fim da família enquanto instituição social. Fala-se na tentativa, desesperada, de se resgatarem valores já relegados a quarto plano. No que tange a valores familiares, para que se possa resgatar alguma coisa, dever-se-ia proibir o divórcio. Óbvio que isto soa, no mínimo, como absurdo, atualmente.
Papéis. Não se poderia esperar outra coisa de uma sociedade estratificada. E no mundo da futilidade comunicativa de eternos rótulos, somos de tudo um pouco. Pais, até.
E somos pais, num mundo de mães. Aqueles homens que quebraram os grilhões do machismo chauvinista tornaram-se pais mais presentes, mais amigos e porque não, mais crianças? As renovações compensam a falta de valores antigos, considerados bons para a sociedade. Pais mais presentes, independente de viverem ou não com as mães de seus filhos.
Sou produto de família dividida. Tive dois pais e sinto-me privilegiado por isso. Uma grande contribuição dessa situação foi a visão disfocada que tenho da realidade: a de não enxergar apenas uma alternativa para as coisas, mas no mínimo duas. Dois pais diferentes, com duas visões de mundo diferentes. Edipicamente falando, tive de matar dois pais. Bobagem. Tenho-os comigo constantemente fazendo parte de meu ser. E sou feliz com isso.
Não sou dado a datas comemorativas porque o comércio as abarcou como suas. Apenas aproveito a intensidade do momento para discorrer sobre a comemoração. Pais quarentões como eu, que já aproveitaram sua virilidade satisfatoriamente e hoje choram em filmezinhos românticos, preferem receber um abraço apertado de seus filhos ouvindo, orgulhosos, “o quanto você é importante em minha vida”, a ganhar o último grito em televisão de LCD. Lembro-me muito bem quando ganhei a primeira carta do dia dos pais. Fiquei lendo e relendo sem parar por dias. Ali, naquele papel rabiscado, cheio de garatujas, eu vi que era pai, ou melhor, que alguém me considerava pai. Agora, neste momento em que estou escrevendo esta crônica, estou ao lado de minha filha no posto de saúde, esperando que ela seja atendida. Hoje então, foi também meu dia dos pais, com toda a intensidade desta significação.
Neste dia dos pais, digamos a eles o quanto os amamos e o quanto são importantes para as nossa vidas. Mesmo que eles já tenham se ido, digamos isto para o pai que vive dentro de nós. Sim, porque o maior legado de um pai, a educação e o exemplo, vivem em nosso interior. Não importa se o pai genético não foi presente. Alguém cumpriu esse papel, ainda que fosse uma vizinha ou a própria mãe. Como havia dito anteriormente, os termos pai e mãe já transcenderam ao gênero. Feliz dia dos pais. Com certeza, não há presente maior do que este.

3 de ago. de 2010

Fórmula para Um

Esporte. Desde tempos imemoriais, uma fórmula de vitalidade e superação dos limites. As Olimpíadas eram sagradas. O atleta que as vencesse, seria considerado um verdadeiro herói, quem sabe um semideus. As justas medievais não testavam somente o condicionamento físico do contendor, mas seu caráter, o que mais tarde transformou-se no espírito esportivo. Como o esporte é um produtor de vencedores, e, portanto, parâmetros de sucesso, não tardou muito para que o modo capitalista de ser usasse o esporte como arma de propaganda. Até aí, tudo bem.
O que temos visto no mundo da pós modernidade é no mínimo, curioso. A ciência, a tecnologia e o patrocínio tornaram-se a “tríade intrínseca” por detrás da superação. Em nome do resultado e da manutenção deste, foi criado o contrato, com cláusulas bem sólidas de conduta. O atleta não pertence mais a si próprio. Ele pertence agora a um conglomerado de instituições comerciais. Nada mais apropriado para quem quer vencer campeonatos.
Lembro-me claramente de minha pré-adolescência e de como penava para ser aceito no meio social onde vivia. Tocar um instrumento não era algo assim muito valorizado, mesmo porque o game dominante dessa minha época era o jogo de botão. Se fosse o Guitar Hero, talvez eu exercesse maior poder sobre meus amigos. Bem, tive de me esforçar muito para jogar bola de modo satisfatório, para não sofrer a humilhação de ser o último escolhido para compor um time. Não havia lido ainda Sun Tzu, porém minha estratégia logrou êxito: tornei-me um eficiente defensor. Marcava, retomava, passava e lançava com uma considerável eficiência, reconhecida pelos meus amigos. Não fui craque, mas não era um pé torto. O bom do amadorismo é que não precisamos assinar contratos. Não sofri nenhuma crise ética por causa disso. Consciência ética e letrinhas miúdas de um contrato definitivamente não combinam.
Esporte profissional. O termo hoje em dia encontra-se no plano do contra-senso, do ponto de vista da liberdade de praticá-lo. Concentrações, dietas (desculpe, Ronaldo), direitos (e deveres) de imagem, fama, cláusulas punitivas, condições impostas por quem patrocina, só para citar. Quanto mais popular o esporte, maior o número ds cláusulas. Vidas e mortes constantemente expostas porque, se o bom exemplo traz dinheiro, pelo menos aqui na brasilândia, os maus exemplos trazem mais ainda.
Amo a Fórmula 1. Não sei porque, vejo mais graça na velocidade do que 44 pernas em movimento cuja bola é a centralidade e o gol, o céu ou o inferno, dependendo do ponto de vista. Pilotos a trezentos por hora lidando com o tempo, desgaste do motor, dos pneus, vencendo dificuldades mecânicas, pressões psicológicas dos donos de equipe… Um verdadeiro rizoma de forças que transformam-se em dominantes numa fração de segundos. No futebol é bem mais simples: em caso de derrota continuada, vão-se os técnicos, ficam as pernas.
Falando em pernas, Barrichelo teve de abri-las num passado não muito distante. Schumacher somava mais pontos. Schumacher devolveu mais tarde, um perfeito gentleman. Afinal, não é somente no futebol que existe o jogo de comadres.
Num Deja Vu manjado, a história apresenta seu retorno. O carro ia bem, a corrida estava na mão. Mas o contrato não. A sede de vitória do eqüino vermelho foi além da prática esportiva. Tá no contrato da vida, vencer sempre, não importa o custo. A conhecida frase “o importante é competir” obviamente foi escrita por alguém que não conheceu o verdadeiro gosto da vitória e por quem ficou famoso com ela.
O frustrante não é saber que o esporte profissional é assim. O frustrante foi ver o rosto conflitado dos dois pilotos quando se encaminhavam para o podium. Humilhação maior foi de quem ganhou sem ter vencido. A fórmula para um esporte verdadeiro é cortar os elos com os contratos. Afinal, superação é o que conta para quem torce.

27 de jul. de 2010

Animais Videntes

Século XXI. Tecnologia da comunicação. Pesquisas científicas nas alturas. A metereologia, por exemplo, está caminhando para um prognóstico acertado do tempo em relação ao que acontecia há quinze anos atrás. Podem-se prever com antecedência espantosa as repercussões globais de um crash da bolsa de valores de algum país. A sociedade, nas últimas décadas, tem procurado se organizar no sentido de poder prever, através da lógica e da multidisciplinariedade de diferentes áreas do conhecimento coisas ruins que possam vir a acontecer, prejudiciais à existência humana na Terra. Meteoros maníaco-depressivos são uma delas.
Dois mil e doze. Prevendo o futuro, já marquei uma cervejada com meus amigos no dia 22 de dezembro daquele ano. Prevejo o melhor, mesmo porque se o pior acontecer, será o fim da picada... Literalmente.
Sob as forças que dominam, normalmente aparecem forças reativas na mesma intensidade e significância. Quanto mais a ciência e a tecnologia evoluem no sentido de melhorar a qualidade da vida humana, mais a superstição e a busca por respostas além do conhecimento científico crescem na mesma medida. O futuro sempre foi uma constante preocupação. Necessitamos saber o que vem por aí, não importam os meios usados para isto.
Bem, nesta última copa mundial de futebol entrou em cena um outro tipo de craque: um polvo. Também uma foca, um cão e um papagaio. Animais videntes. Uma novidade a ser amplamente comentada. O povo Paul, inclusive, fará uma pontinha num filme chinês. Beverly Hills que se cuide. Aí vem o zoológico, com tudo.
O curioso é que na antiguidade os animais não eram adivinhadores, mas por outro lado, instrumentos de adivinhação. Lia-se o futuro nas entranhas dos peixes; previa-se o tempo no voo das aves, e assim por diante. Aos animais não era dado o privilégio de pensar, refletir e prever o futuro.
Mas vejam vocês o que o mundo hi-tech apronta: um polvo que não errou nenhum prognóstico em detrimento do papagaio que sonhava em ver o Maradona nu nas câmeras. O polvo Paul previu, então está previsto. Não se argumenta com um polvo, pois este é dualista: se algo não é presa então só pode ser predador.
Fico viajando um pouco na maionese, e como todo bom filósofo de quiosque praial me pergunto se nosso amigo Paul não poderia prever o próximo resultado da loteria local. Sim, porque além do marketing, somente a loteria é universal. Paul (e porque não outros que forem aparecendo) poderia responder questões mais urgentes para nós, pobres primatas, tais como se o ciclo de vinte e cinco mil anos realmente acabará em 2012. O Faustão, a exemplo dessa crônica, poderia criar o quadro “Vidência Animal”. Com toda certeza algum brasileiro terá, em cativeiro, um chupacabra com o dom da premonição. E como chupacabras devem ser possuidores de uma inteligência maior do que a dos cefalópodes, ao invés de apenas fazerem escolhas simples entre uma alternativa e outra, poderá escolher entre cartas enigmáticas em baús escondidos no público, ao mesmo tempo em que dança um reboleixon. Um verdadeiro espetáculo, que aprofunda e embeleza um plano de significação tão importante quanto a previsão do futuro.
Há que se pensar sobre isto e não deixar a mídia criar significâncias ilusórias. Animais que até cem anos atrás não tinham nem alma, agora têm espírito premonitório. Pobres de nós. Pobre mãe Dinah, Zora Yonara e Omar Cardoso e Walter Mercado com seu famoso "ligue djá", saudosos midiáticos.
Em contrapartida, na humilde opinião desse humilde “metido”, não há futuro melhor do que cuidar e viver bem o presente.

16 de jul. de 2010

Mede o Ensino

E bateu a química. Neurotransmissores enlouquecidos levaram o casal na pré-descoberta da atração à loucura. Coração em disparada, olhares dela contidos, sorrisos dele, descontidos, aproximação e sem verborréias preliminares, um beijo. Olhos fechados e mente turva. Hormônios explodindo, soltando fogos de artifício. O lobo frontal, fechado para balanço. O hipocampo congestionando conexões. Amor? Insanidade? Não sabiam. E nada disso importava. A química estava em alta naquele momento único em suas vidas.
Veio a biologia. Ela agitava os cabelos, feromônios à vista, ele, enlouquecido. Ele endireitando as costas para ficar o mais alto possível, e assim, demonstrar proteção aos futuros filhotes. Ela atlética, estilo “chester” (peito e coxa), uma boa reprodutora. A dança, ritual de acasalamento mostrava que os dois estavam, na balada, aptos para o perpetuar os genes. Não havia necessidade nenhuma de palavras, os corpos diziam tudo. E a música alta impedia a filosofia. A essa altura, o lobo frontal curtia férias.
Em cena, a matemática básica. Ele, dezenove, ensino médio concluído, ela dezoito, concluindo. Boa diferença de idades. Estudariam juntos. Ele, Letras. Um grande escritor no futuro. Ela, gastronomia. Uma brilhante chef. Em cinco anos estariam prontos para somar e multiplicar. Dividir gastos e subtrair problemas. Potencializar ganhos radiciando bens numa eterna báscara para a felicidade.
A física. Sem a gravidade, o amor é nulo. Dois pés no chão, fazendo peso. A cinemática, o movimento, a força, a aceleração e o atrito, em benefício do prazer. A inércia, para aproveitar cada momento vivido. E novos vetores que os empurravam em MRU, um para o outro.
A Educação Física. Ele, jogador de vôlei, ágil, paciente, hábil com as mãos. Ela, surfista, corpo esculpido em aeróbicas, pilates e musculação. Dois aviões no máximo do “corporis sano”. O “mens sana” ainda estava curtindo um descanso.
A Geografia. Residiam perto, fácil o encontro. Norteavam-se pelo cheiro do perfume, um do outro. Globalizaram suas amizades privadas, mas estatizaram seus segredos mais íntimos. O clima, tropical de altitude, sempre sujeito a chuvas e trovoadas no final da tarde, mas sol e calor, na maior parte do tempo. O relevo já decorado pelos dois, em suas mínimas nuances. A cada encontro, o sismógrafo apontava 7,6 graus na escala Richter.
Artes. Fotos tratadas, filmes no youtube, bilhetes quilométricos com o nome dela escrito mil vezes. Um quadro de caricatura decorando o quarto dela feito por um desenhista en passant no bar mais badalado da cidade. Um coração imenso desenhado a giz na rua em frente a casa dela. Quanto mais o tempo passava, mais humana ia ficando a relação. Afinal, as exatas já haviam concluído sua tarefa.
Inglês. Na intimidade, o ouvido dela era bombardeado por frases na língua anglo-saxã. Não havia nenhum entendimento significativo dela, mas o tom de voz era tão doce que a química e a biologia faziam muito rapidamente a sua parte. Por tradição, um bom I Love You tem maior valor que um Eu te Amo.
História em foco. O historiador é um profeta com os olhos voltados para trás. Todos os relacionamentos anteriores foram efêmeros, mas todos os preparavam para este, dito definitivo. Fatos omitidos por questões politicamente corretas. O processo histórico de uma nova vida florida estava em jogo, e o passado sempre acusador, poderia reativar o caos. A história começara agora. O antes era coisa de algum homo habilis, que não era sapiens.
Mataram muitas vezes a única aula de filosofia da semana, iam para a sala das bolas no ginásio, namorar um pouco. Já tinham o seu Platão em suas vidas. O Descartes já estava combinado. Hegel já os havia reunido na dialética e no absoluto. Às favas com Sartre, Nietzsche e todo um negativismo niilista. A única filosofia permitida a todas as criaturas era o amor.
Um novo livro a cada semana. Da leitura de Tempo e o Vento, passou-se aos best sellers: Mulheres são de Vênus e Homens são de Marte. Havia pressa em definir o que era todo aquele sentimento novo, e o subjetivismo da literatura antiga não era bem vindo. A literatura ganhara, para os dois, novos paradigmas.
Enfim, chegara o tempo da identidade. Do confronto de ideias dantes relegadas a segundo plano. Conversavam tanto sobre a faculdade recém conquistada e o mundo novo que se postava diante deles. Um mundo em constante movimento. Ele, estarrecido com teorias literárias, escrevendo sobre tudo e todos. Ela, impressionada com conhecimentos novos sobre alimentos e suas técnicas de preservação do sabor.
Aconteceu de conhecerem seus novos amigos. Começaram com os novos colegas da gastronomia. Uma frase dela e o lobo frontal voltaria das férias. —Agora com a faculdade até que tem menas coisas pra mim fazer durante a semana. Menas? Pra mim fazer? Como os colegas da Letras receberiam isso? O lobo frontal acordara e estabelecera o caos. E agora? Ela sempre ficava em recuperação na disciplina de português. E isso agora, era significativo. Um elemento do processo histórico que havia sido deixado de lado. Uma cortina de ferro da antiga bipolarização do mundo. Agora a filosofia enquanto arte do pensamento clamava sua presença em sala de aula. Em tudo, tudo mesmo, menos no português. No Ensino Médio da vida, nunca esqueça a boa comunicação. Com certeza a oxitocina continuará em alta, por muito tempo.

6 de jul. de 2010

Pedacinhos

Guilherme Arantes, na década de 1980, conseguiu ser um romântico incorrigível sem alcançar o perigoso nível da breguice chauvinista. E conseguiu isto numa canção de mesmo nome do título desta crônica.
A despedida da seleção brasileira desta copa no país do “apartheid comportadinho” (ou que propósito teria tantos discursos contra o racismo?), pode ser comparada ao final de um relacionamento, ou de modo geral, ao final de todo vínculo emocional com uma coisa ou alguém.
Ficam as mágoas, juntam-se os pedacinhos. O que era um ardente “meu bem” transforma-se num efusivo “meus bens”. Cobra-se até o custo da peridural que permitiu um alívio maior no nascimento do filho; no fragor da batalhas, não há fracassos, não ao menos da parte do que analisa. É sempre o outro, o causador do sofrimento. No mundo das causas e efeitos alguém sempre paga o pato.
O pato pode ser o infiel da relação. No caso da seleção, Dunga não foi infiel. Ele era o marido autoritário. Não discutia a relação com sua esposa, a imprensa. E esta, como sói acontecer, o destruía para sua melhor amiga, o povo. O pato também pode ser o chato da relação. O exigente, o fleumático, o sempre sério. A esse não concedemos o perdão, pois a sisudez não está na moda do culto ao corpo, e agora, à psique. Até a “melhor idade” deixa de lado as constantes dores de um corpo desgastado para sorrir diante das câmeras. Bem, nesse quesito, o técnico da seleção pagou caro. Poderia ter sido o técnico mais afetivo e compreensivo que a seleção brasileira já conheceu, mas... à mulher de César... bla, bla, bla... Diferente de seu arquiinimigo, o Dieguito, sorridente, passional, afetivo com seus jogadores. No caso argentino, ninguém pagou o pato ao final da relação, pois como disse Nietzsche, “aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal”. Foi uma paixão que se perpetuou em sua torcida.
Pagar o pato era uma especialidade masculina, até o meio da década de 1990, de quando as mulheres sentiram cheiro de sangue e foram em massa, à luta. Hoje o pato pode ser pago por elas também. Assim como dos jogadores. A seleção havia jogado apenas contra uma equipe forte, com quem empatou sem gols, antes de jogar contra a forte e decidida Holanda. Quando o problema tornou-se grande, a brasileira titubeou, escorregou e, caiu. A mulher do pós modernismo não é mais aquela que aturava tudo. Hoje ela contabiliza, ou seja, ama, mas pensa. Claro que, acaba pagando o pato.
O pato seria melhor administrado numa relação se fosse dividido conscientemente. E que se caísse logo a ficha de que um relacionamento acabou e que o mundo continua a girar, o sol brilha e a grama cresce. O relacionamento de Dunga com a CBF acabou como acabam os relacionamentos modernos: pela internet. Bola pra frente, literalmente falando. Não é conveniente continuar tratando o outro da mesma forma que se tratava durante o relacionamento. Distância, respeito e, se possível, amizade. Os pedacinhos ainda necessitarão de muito tempo para reunirem-se novamente. Na seleção, como na vida de pessoas que ainda insistem em valorizar o mundo das ideias, fica sempre o “e se?” Se paga o pato. Mesmo porque, e se o Pato tivesse sido convocado? Teria sido diferente? Não importa. O passado é história. Daqui a quatro anos será documentário. Como diz o senso comum: nada como uma nova relação para esquecer a velha. Ame, mas não esqueça nunca de convocar o pato para sua seleção.

“Eu bato o portão sem fazer alarde, eu levo a carteira de identidade, uma saideira, muita saudade e a leve impressão de que já vou tarde.”
Chico Buarque

21 de jun. de 2010

Vuduzelas, Saramago e Resultados

Nos anos 1990, Gustavo Kuerten trouxe o tênis para o Brasil. Na campanha do primeiro título da Roland Garros, um lance foi magistral: sua honestidade. A bola, segundo o julgamento de Gustavo, caíra dentro enquanto que o juiz dera como bola fora. Mesmo sabendo que poderia perder o ponto, Kuerten foi lá e bateu com a raquete onde a bola tinha caído, dentro da quadra. O fato foi citado e a atitude engrandecida pelo narrador. Depois, facilmente esquecida.
Jogo do Brasil contra a Côte D’Ivoire. Um lance bonito, dois chapéus em cima dos adversários e o gol. Perfeito, se não tivesse sido a bola dominada pelo braço. Luís Fabiano sai comemorando e com a cabeça e as mãos para cima como se agradecendo a Deus. Pelo quê, pergunto eu; pelo fato do juiz não ter visto a dominada com o braço? Saramago, em todo o seu criticismo pelo cristianismo moderno, ironizaria. Mas ele se fora. O que não partiu e tornou-se imortal foi sua acidez, humor e ironia sobre as coisas institucionalizadas da religião. Regras, meras regras. Feitas também para serem distorcidas, corrompidas e até mesmo, ignoradas. É do jogo, diriam alguns.
Torcedores torcem, comemoram, riem, choram, não refletem sobre particularidades. Afinal, futebol é resultado e Saramago, o processo. E entre os dois estão as vuvuzelas, cujo ruído eu peço a licença trocadílica de renomear para vuduzelas porque o som é horrível. Tadinha da natureza na África do Sul. Quem lê os prêmios Nobel da história também torcem, mas pensam. Os mais chatos pensam até demais, sobre os detalhes. Mas os detalhes fazem sim, toda a diferença. A diferença entre um Gustavo e um Luís Fabiano, dois ícones do esporte, separados por uma atitude, um detalhe. Imagine o comentário da imprensa se o Luís Fabiano tivesse parado no meio do lance, retido a bola com a mão, entregue ao juiz e dito: “eu dominei com o braço”. Mas o lance foi muito rápido. Atitude e honestidade em seguir regras é uma questão de reflexo condicionado. Um hábito de se fazer o que está dentro das regras até de modo inconsciente, e que muitas vezes passa despercebido. Vai ver por isso que o erro tem maior ibope: porque traz à consciência. No livro Caim, de Saramago, Caim traz Deus à consciência sobre suas decisões. Ironia, cobrança de atitudes. Luís Fabiano fez o gol, e o resultado final foi a vitória e a reconquista do atacante frente à sua torcida. Imagine-se o contrário: Drogba no lugar de Luís Fabiano, e a Côte D’Ivoire ganhando o jogo. O discurso “é do jogo” seria facilmente esquecido, e traríamos à baila a questão da honestidade. Uma honestidade reflexa há muito tempo esquecida. Deixada em flashes na década de 1990. Requerida na política brasileira, mas deixada de lado no futebol. Afinal, o que importa é o resultado. O processo? Bem, isto fica para a eterna briga entre Saramago e Deus. Sobre o que é melhor fazer: seguir as regras ou burlá-las e curtir a diversão? As vuduzelas precisam fazer barulho, ensurdecer, comemorar e não refletir sobre processos e detalhes.

26 de mai. de 2010

Devagar

O pedido era a coisa mais difícil. O coração, prestes a sair pela boca, tornava turva a visão; os ouvidos não funcionavam; as ideias não fluíam; tudo se resumia ao momento crucial de um simples sim. Depois, as coisas iam devagar. Pegar na mão e andar de mãos dadas era o primeiro passo. Avisávamos que existia ali uma união. O primeiro beijo. Muitos casais passavam um namoro inteiro sem se beijar. Para algumas meninas, isso era compromisso demais, e elas eram de família. Mas, assim como o primeiro sutiã, o primeiro beijo é praticamente inesquecível. E outra: tudo o que se fizesse, era junto. Esse negócio de um ir à festa e o outro não é de agora, não era nem aventado na minha adolescência. Isso era namorar. Era estar junto sempre que se pudesse. Namorar em casa era raro. Só depois de alcançar certa idade, 16 ou 17 anos. E muitos pais não aprovavam o namoro. Era uma verdadeira loteria. Namorava-se no sofá, vendo a novela, com os pais presentes na sala, geralmente. Terminada a novela, bocejavam e crivavam o inocente casalzinho de olhares inquisidores. O pai limpava a garganta com um sonoro “arramm” e a mãe dizia a célebre frase “está tarde, né?” Era hora de o namorado escafeder, e se fizesse cera, de fenestrado seria, sem cerimônias. Pequenas conquistas eram grandes negócios. Os irmãos mais velhos vigiavam suas irmãzinhas como se fossem a jóia da família. Numa festa, sem a presença paterna, tínhamos que burlar a constante vigilância fraternal. Mas quando conseguíamos um momento sozinhos, era a Glória (não, não tive nenhuma namorada chamada Glória). Um beijo, juras de amor, e a paciente espera pelo casamento, onde o “enfim sós” tinha uma real significação. Mas isso demorava em acontecer. O tempo corria devagar. O Chronos nos devorava a lambidas. Assim, prezada geração subseqüente à minha, era um namoro do meu tempo adolescente. Não importava se o casal tivesse 13 ou 14 anos. Todo namoro era um compromisso sério com uma centralidade: o casamento e a instituição de família.
Mas como se chegava ao namoro? O planeta onde habitamos na segunda metade da década de 1970 não tinha internet, portanto, orkut e Messenger seriam palavras ouvidas somente no interior de uma Enterprise. O telefone era um bem e não um serviço. Uma linha telefônica custava o mesmo que um apartamento de dois quartos. Escrever cartas era um suicídio declarado, pois certamente os pais (ou o irmão) interceptariam. A solução eram os amigos e os bilhetinhos. Olhares furtivos, sorrisos tímidos, sentar perto e sorrir sempre que o outro dissesse algo eram os sinais de proximidade e aceitação. Um bilhete, o primeiro, era sempre anônimo, mas a moça já sabia de quem era aquela caligrafia toda torta de quem escreveu nervosamente. Os amigos transformavam-se em verdadeiros pombos correios e a fofoca era inevitável. À noite, sonhava-se com o bilhete de resposta. Quando, no outro dia, ele não vinha, a vida perdia todo o seu sentido.
No meu caso não foram os bilhetes. Foi o famoso “questionário”. Pegava-se um caderno de 100 folhas (aqueles da Cepal, que tinha um burro na capa azul anil) e colocava-se na primeira linha as perguntas mais estapafúrdias que se possa imaginar. Mas a que gerava adrenalina era: “de quem você gosta?” Pergunta reveladora. E se a nossa projeção romântica respondesse que não gostava de ninguém, ou que gostava de outra pessoa? Lembro-me como se fosse hoje. Logo após a essa fatídica pergunta, vinha a pá de cal: “Ele(a) gosta de você?” Bem, eu era o número dois, ela era o número 14. O que ela respondeu está gravado em minha mente: “pergunta para o número dois”. Era o aviso. Assim começou meu primeiro namoro.
A lentidão com que as coisas aconteciam era impressionante se comparada à atualidade. Eternidades separavam o namoro do noivado e o noivado do casamento. Ir morar junto era passível da fogueira semiótica da sociedade local. Acredito ser por isso que todos nós almejávamos alcançar a idade adulta com tamanho afã.
Num relacionamento moderno, não importa a idade, fala-se muito em ir devagar. É consenso entre o casal começar devagar. A palavra é ordem. Mas e seu significado? Sua significância, dada a intensidade como se dão os relacionamentos nascentes torna-se complicada de traduzir. Ora, como ir devagar quando temos a liberdade à nossa frente (o irmão já não é mais o pitbull, é ele quem dá as dicas), quando temos as formas de comunicação mais rápidas da história. Temos celulares com operadoras que oferecem planos tentadores para se falar mais e mais. Nem o transporte público é mais desculpa para que o casal não se veja. Tudo isso são fatores para que os relacionamentos sejam muito intensos e a vagarosidade perde seu sentido lato. Não há pequenas conquistas, como no planeta onde habitei minha década de puberdade. Há uma conquista apenas, de sentir que é intenso e essa intensidade, vivida pelos dois, independente de tempos.
Melhor? Pior? Não acho. Vivi e vivo as duas situações. Cada uma tem uma intensidade e vida próprias. Continua-se sonhando e amando como sempre se fez. E, como, provavelmente, por muito tempo ainda se fará.

18 de mai. de 2010

Eu Bebo Sim, estou Vivendo.

Incrível como uma canção simples pode muito bem expressar o sentimento de uma época, bem como de seus vetores metonímicos de verdade. Ou o que queremos acreditar ser verdade. “Eu bebo sim, estou vivendo, tem gente que não bebe e está morrendo”, sucesso da década de 1970. Vejam a profundidade filosófica que encerra esta frase. Beber ou não beber, vamos morrer de qualquer jeito. Então se bebe porque ao menos se vive melhor. A força do sim. Sim, eu bebo, concordo em beber e gosto do que faço. O mundo atual perdeu a força do sim (sem perder a do não). Quando dizemos sim para alguma coisa é porque temos a forte convicção de que aquilo é a mais pura verdade.
Não pretendo ficar aqui mostrando hipocritamente, os males das bebidas alcoólicas, pois cairia no clichê e no velho jargão da moral de cueca. Quero apenas falar de um cinismo social manipulatório, que atende a interesses de um setor em detrimento de outro. Tenho saudades, por exemplo, do Free Jazz Festival. Ouvir e ver os maiores jazzistas da atualidade era único. Claro, patrocinado por marca de cigarro, uma coisa tóxica e prejudicial, execrada pela sociedade moderna. Os jovens andam fumando menos, as mulheres mais, os homens, sei lá. Quem sofre com isso são os atores, porque uma ótima linha de fuga para a proibição da publicidade do cigarro são os filmes nacionais ou internacionais. Atores de renome, charmosos, pujantes, aparecem fumando nos filmes, e sabem como é o ser humano, né... Há que se ter parâmetros de beleza para que os imitemos, ou diminuamos nossa auto estima por não sermos como eles. Parafraseando o Fritz*, o mal do mundo é Platão, e não somente o cigarro.
“Eu fumo sim, estou vivendo, tem gente que não fuma e está morrendo”. A frase serve pra qualquer coisa. Ela é perfeita. A força da vontade. Mas o foco é a bebida, não nos desviemos dela. Somente bêbados é que podemos desviar dos assuntos, e ainda assim, no outro dia, negar até a morte que falamos que a Gisele é nariguda. “In vino, veritas”. Dizem por aí que se você quer realmente conhecer alguém, dê poder a ele. Eu já digo o seguinte: se você quer conhecer alguém, dê algumas doses a ele. Um outro eu, há muito enterrado, emerge para a superfície e raramente não nos impressionamos com o que ouvimos. Nosso lobo frontal defende com unhas e dentes nosso passado, e nossas concepções heréticas sobre a realidade. Muito cínico esse lobo frontal. A bebida então, é a salvadora da situação. Dali, abre-se a caixa de Pandora. O tímido fiel vira mulherengo; o mulherengo vira gay; o gay continua gay (não é questão de bebida, como dizem); sim, senhores, experimentem tomar um bom porre e telefonar para os amigos no outro dia. Ah, não esqueça de anotar quem foram os amigos que o acompanharam, você provavelmente esquecerá. O auto conhecimento é um dever. Tomo um porre por ano, mas, num bar onde ninguém me conhece, e já marco com um taxista para ser levado para casa. Nesse porre, espanto os fantasmas. Falo mal até da Dilma e do Serra, que é a pontuação da atualidade.
O cigarro faz mal. Não há dúvidas. Mata, corrói. E a bebida? Não?
Estatísticas. Números, porcentagens. Elas dizem o que queremos que elas digam. A bebida mata menos do que os acidentes de trânsito. Claro que não se diz que na maioria dos acidentes, a autópsia demonstrou que alguém tinha tomado um pouco mais do que devia. A bebida mata sim, mata nas estradas, provoca homicídios e faz a gente dizer a verdade. Mas, curiosamente, não há leis que proíbam a livre propaganda de bebidas alcoólicas na tevê e em outros meios de comunicação. A bebida alcoólica inclusive, agora, patrocina a seleção brasileira. Fantástico. “Eu bebo e torço sim, tem gente que não bebe e não torce e está morrendo, eu bebo e torço sim”. Meninos que sonham em jogar futebol. Alguns alcançarão o estrelato, outros jogarão na segundona, com uma média de salários em torno dos 800 reais. Mas a maioria vai beber. E uma parte vai se tornar alcoolista. Melhor para a indústria da bebida. Melhor para os programas de saúde, que terão matérias infindáveis.
Até hoje, não vi em nenhum hipermercado da capital onde resido, uma caixa pedir o documento do jovem que compra bebida alcoólica. A lei existe, está ali. Se há algum bar que pede a documentação para jovens que sentam e pedem bebida, não vi também.
Bebamos, pois amanhã poderemos não estar mais aqui. Maria Alcina que o diga. À noite, tomarei um porre, quero esquecer a crônica que escrevi. E viva Maria Alcina. E viva a seleção. E viva o refrigerante...ops!

PS.: Fritz é uma alusão carinhosa a Nietzsche, não se preocupem, não bebo pela manhã.

11 de mai. de 2010

Paradinha

Nada traduz melhor o momento atual do mundo e do Brasil do que a “paradinha” na hora de bater o pênalti, em minha opinião. Essa estratégia é aplicada aqui no Brasil, em detrimento da Europa, onde o árbitro não permite esse subterfúgio do atacante. O Brasil, então, é o país do novo paradigma: o da paradinha.
Em primeiro lugar, não consta nas regras do futebol que o jogador que vai cobrar o pênalti não possa parar bruscamente na hora de bater na bola; em contrapartida, o goleiro não poderá se adiantar antes que o jogador bata na bola, pois isso diminui o ângulo de visão de quem cobra o pênalti. Ora, pra quem se defende existe regra, pra quem ataca, não. Semelhante ao estado natural das coisas em nosso país. Experimente ser honesto e trabalhador, pra ver se não te pegam no primeiro deslize. Você, o goleiro. Os espertos, os batedores.
Há uma questão musical nisso tudo. A paradinha é um compasso 1/8 numa música de compasso 2/4. Em linguagem mais simples, é uma quebrada de ritmo. É como se alguém, a cada 8 passos dados, desse dois passos para o lado esquerdo. Sabe aquela hora em que você está andando na calçada e alguém em sentido contrário vem em sua direção, e, educadamente desvia pra direita e ele faz a mesma coisa (claro que pra ele será a esquerda)? Pois é, a paradinha tem esse descompasso. O goleiro acompanha, intuitivamente, o ritmo do batedor do pênalti, e sem mais nem menos, ele causa um descompasso na situação, deixando o goleiro numa sinuca de bico.
Por que a paradinha, se o pênalti já é meio gol? É difícil para o goleiro prever em qual dos lados o batedor vai direcionar a bola. Meio loteria o negócio. Simples. Os goleiros vêm pegando a manha dos batedores de pênalti e têm defendido mais cobranças do que antigamente. Os goleiros estão mais ávidos. Descobriu-se que além de fazer gols, é muito saudável não tomá-los. Até pouco tempo não se treinava goleiros especificamente. Goleiros normalmente são altos além de ágeis. Alguns continuam jogando mesmo passando dos 38 anos. Experiência é tudo nesse ramo, o da defesa. À medida que envelhecemos, vamos aprendendo as manhas da vida e nossa defesa fica cada vez mais eficiente. Mas aí vem a paradinha.
Ela é uma linha de fuga na ânsia do resultado. Não foi o goleiro quem pegou. Foi o batedor que executou mal a cobrança. Sempre achei o pênalti uma coisa injusta num esporte dito “social”. Naquele momento não há nada de social. Individual. Um contra um. E ninguém por todos. A paradinha é a tentativa de salvação para o processo evolutivo dos goleiros em defenderem mais pênaltis. Quanto mais se aumentam as técnicas e os treinamentos, mais se confiam nas intuições, sim, porque naquele momento, a técnica fica subordinada a outros vetores como tranqüilidade, intuição, etc.
Quanto tempo levará para que os goleiros se adaptem a essa nova jogada? Ela é lícita? Se compararmos com a lei que o goleiro não pode se adiantar e dar sua “puladinha”, a paradinha é, no mínimo, injusta. Como será na Copa do Mundo? A FIFA permitirá esse tipo de cobrança? Ou na hora crucial em que a seleção precisar de gols e resultados paralelos a desculpa não será “perdemos porque o juiz não permitiu a paradinha”.
Queremos e ansiamos por mais justiça em nosso país. Mas talvez estejamos esquecendo que antes da transgressão da lei, sempre haverá a corrupção de princípios que regem essa lei. A corrupção é a paradinha da política e da economia atual. É aumentar a velocidade quando vem o sinal amarelo. É sair de fininho quando o cachorrinho faz cocô e não temos saco plástico para juntá-lo, como diz a lei. A paradinha é o simulacro necessário de um mundo em constante mudança, sem saber porquê e para quê a mudança.
Questão de ponto de vista? Na vida, seremos tanto os goleiros que reivindicarão justiça, como seremos os batedores de pênalti, reivindicando o melhor resultado. Já estou treinando para defender a paradinha. Tenho uma técnica infalível. Mas é segredo de Estado. Só a vendo por alguns milhões.

PS.: A pergunta que não quer calar: Se o Baggio tivesse dado a paradinha, teríamos alcançado o tetra?

7 de mai. de 2010

Mães Mais

Acordo às seis e meia. Sete e cinco o café está na mesa. Café simples, o da classe média brasileira: pão de meio quilo, já cortado em fatias, margarina e geléia. Às vezes, depois de algum aniversário, sobras de bolo. Nas férias, às dez horas, um coquetel de frutas já cortadas ou descascadas. Meio dia e quinze, almoço. A quantidade certa para nós três e depois, para cachorros e gatos. Três horas da tarde, café. Um bom pão de quarto de quilo com maionese, às vezes, rodelas de salame, cortadas finíssimas, na hora. Sete e quinze da noite, janta. Nada congelado, ou sobras do almoço. Um prato novo, quentinho, acompanhado, em geral, por um suco de maracujá, que a voz feminina dominante dizia ser bom para a digestão e para se dormir tranqüilo. No outro dia, tudo de novo, e assim por diante. E, diante de todo esse esforço, no domingo, ou um bom churrasco com a família toda reunida, ou um merecido descanso, com um almoço em um bom restaurante da cidade.
Dedicação. Essa deveria ser a palavra de sinônimo ao termo mãe. Sim, porque toda essa rotina carecia de muita dedicação. Uma mulher e dois homens. Minha mãe, eu e meu pai. Tudo no seu horário britânico. Nosso único trabalho era estar lá. No menu de minha infância, o prato principal sempre foi minha velha, edipianismos à parte. Sim, minha velha, pois minha mãe era minha avó. Taciturna, séria, invocadinha, mas a dedicação encarnada. Não saiu da terceira série do primário. Mas se dependesse de mim, ganharia o título de mestrado em maternidade.
Distância. Uma coisa que não conheci nem na minha infância, muito menos na minha adolescência. Minha avó demonstrava carinho através do cuidado, do chazinho, do horário das refeições. Mostrava afeto quando me colocava pra dormir. Um simples beijo de boa noite. Repreensões nunca foram feitas na frente de outras pessoas, muito menos na frente de estranhos à família. Eram duras, castigos físicos até. Mas tudo de forma velada e sem ira, ou revolta no coração. Quando fui morar com meu pai genético, minha madrasta ainda tinha um quezinho a mais: além do horário britânico nas refeições, aquele conselho sempre bem vindo, fazendo em uma frase aquilo que meu pai não conseguia fazer num texto. Ela quase não falava. Mas esperava a hora certa para dizer o que era mais apropriado para o momento. Tinha uma consciência intuitiva acerca da impermanência das coisas. Coisa que eu só percebo agora, no auge da minha fase adulta. Para essa mãe eu daria o título de mestra em psicologia familiar.
Nenhuma dessas duas mães tem alguma titulação acadêmica. Nenhuma dessas projetou-se na sociedade como apresentadora de tevê, jornalista, esteticista, professora ou modelo fotográfico. São incógnitas para a sociedade. No entanto, para mim, são imortais. Viverão e alimentarão a energia que vem das superstrings que mantém átomos e universo em constante movimento.
Mulheres. Hoje, conquistam sua independência. Estudam, trabalham, crescem profissionalmente, enfrentam o stress do cotidiano. Muitas vezes, graças ao machismo burro que o mundo ainda insiste em manter, têm de chegar em casa e cuidar das crianças ao mesmo tempo em que prepara uma rápida refeição e arruma a bagunça cotidiana. Não passaram o dia juntos, precisam de curtos momentos para a admoestação, carinho, fofocas do dia entre outros. E, nunca dá tempo. O que aumenta a distância. Acho que foi por isso que uma invenção militar como o celular tornou-se um acessório usado por simples mortais. Para diminuir essa defasagem familiar. Não existia celular na minha infância e adolescência e, se existisse minhas mães com certeza repudiariam a ideia. Imagina só um torpedo dizendo: “Vem jantar”, ou um e mail: “Bota o chinelo”. Não, não pegaria mesmo.
Pareço um dinossauro retrógrado com dor na joanete. Mas não posso deixar de expressar e denotar a diferenciação entre o ser mãe ontem e o ser mãe hoje. Nos Estados Unidos é crescente o número de mulheres que adotaram essa profissão, a de ser mãe e parceira. Não são mais condições familiares. São profissões. Em minha opinião, com direito a mestrado. Mas não defendo que a mulher deva fazer isto por imposição da lei da selva, mas que alguém precisa estar menos distante de seus filhotes, isso eu defendo. Afinal, alguém tem que ser mãe nessa casa.
Mãe não é mais uma denominação associada a sexo. Um pai pode ser uma boa mãe. Um pai pode saber fazer bolinhos de chuva como ninguém. Não importa de onde vem a dedicação e o bom conselho. Importa que haja uma boa “mãe” por detrás disso e não uma tevê a cabo, a internet ou um vídeo game. A frase de ordem é: “olha o que eu COMPREI pra vocês, crianças”, enquanto que a frase que eu ouvia era “olha o que eu FIZ pra ti”.
Feliz dia das mães, a todos aqueles que deixam um pouco suas carreiras de lado e se dedicam àqueles que um dia, também serão mães.

PS: Essa crônica é uma homenagem a duas grandes mães que tive na minha vida, e que se imortalizaram: Maria Amália e Emília Correa.

29 de abr. de 2010

Dualismos de Recorrência

O professor e escritor Donaldo Schüller, a quem presto homenagem neste momento, deu, certa vez, uma aula maravilhosa sobre o que é o mito: “Eu vejo a rosa, mas não a entendo; não sei de onde ela vem, e qual o propósito dela estar ali. Então eu crio uma história de como ela apareceu e qual o sentido dela existir. Criei o mito da rosa”. Os mitos são gerados pelas palavras e palavras que geram mitos acabam se tornando elas mesmas, o próprio mito. É o que acontece com o dualismo direita e esquerda na política.
Peço perdão aos meus leitores e seguidores, mas hoje, nesta crônica darei aula de OSPB. Ou como deveria ser uma aula de organização social e política brasileira. Gostaria de desconstruir estes termos duais, que não são nem de longe, contrários entre si. Afinal, este é um ano de eleição, e se ouvirão por todo o país os referidos termos.
Comecemos pelas palavras e a etimologia moral-religiosa que elas carregam. “Não veja a tua esquerda o que faz a tua direita”. Eufemismo. Claro que, levado ao pé da letra, subjuga a esquerda à superioridade da direita. Sinistro. Esta é a palavra para “esquerdo” no italiano. Destro, adestrar; tornar direito. E aí temos a mão certa, a direita. Os canhotos são sinistros. Precisam de tudo diferente. Os destros são direitos. O curso de direito, para se aprender como se é direito (ou disciplinado) aos olhos do poder. Então, no dualismo bem-mal, a esquerda é a que sofre o pênalti. Ainda que isto não seja mais palavra de ordem na atualidade, ainda se usa implicitamente nos discursos políticos. Minha professora de primeira série batia na minha mão quando eu pegava o lápis com a esquerda. Mas devo agradecer a ela. Graças a isto, sou ambidestro. Afinal, sou músico e músico não pode ter essas frescuras de destro e canhoto. Uso as duas mãos para sobreviver.
Direita e esquerda na política são usadas recentemente. Uma coisa do início do século XX. Como contraponto ao capitalismo industrial e financeiro, predador que fazia muitas vítimas, surgiu o socialismo científico como chamado na época. Ser socialista num mundo de lucros e acumulação de capital não era, realmente, uma coisa direita. Pensar que os seres humanos poderiam viver muito bem sem classes sociais era um disparate. Então, esse disparate fora visto como esquerda. Algo sinistro. Bem, na Rússia, esse sinistro virou situação. Tomou as rédeas, ainda que seus líderes não seguissem a contento toda cartilha dos seus criadores. Naturalmente, criou-se o dualismo direita-esquerda para designar capitalismo-socialismo.
Ainda que não houvesse uma real melhora no povo russo, algumas mudanças tornaram-se visíveis e eram usadas como propaganda pelos partidos socialistas mundo afora. Bem, a União Soviética foi a única que não se prejudicou com a crise de 1929. O welfare state de Roosevelt me pareceu ser uma “liberdade poética” de práticas socialistas dentro do mundo capitalista. O Estado retomando as rédeas da economia e criando estratégias para evitar uma convulsão social. Não muito diferente do neoliberalismo samba-tango-salsa atual. Na década de 1950, no pós-guerra, com o mundo dividido, é que esse dualismo atingiu o clímax. E aí que começou a caça às bruxas.
Confunde-se muito direita com situação e esquerda com oposição. Situação e oposição sempre existiram, esquerda e direita, na acepção política dos termos é que não existem mais, ao meu ver é claro. Os partidos que ainda conservam uma atitude bolchevique têm uma representatividade pouco significativa. E não são contraponto nem para eles mesmos. O socialismo soviético ruiu muito mais pelos seus vetores internos do que necessariamente pela sua competição externa com o capitalismo. Fato que a Rússia ainda é uma potência bélica que mete medo no tio Sam. E o pior: virou uma das maiores vendedoras de armas para o mundo dos poderosos que governam paralelamente: o tráfico e o fundamentalismo religioso. O PT autodenominou-se esquerda quando surgiu no fim da década de 1970. Alguns líderes postavam-se como seguidores de Lênin, Trotski ou Mao. Camisetas do Guevara era um aviso: sou de esquerda. Hoje, é cult aquele rosto do Che chapadão olhando pro vazio. Perdeu a significação. Foi o PT virar situação logo depois das torres gêmeas caírem, que já tratou de memorizar a cartilha neoliberal. Mas sem perder o ritmo latino.
Não há esquerda, ao menos no significado dado no dualismo da Guerra Fria. Há sim, contrapontos, como na música, e esses contrapontos, habitam todos o mesmo território, constituem a mesma harmonia de uma melodia dominante, a do mercado global, numa era de superprodução. Quando algum político vier com essa fórmula pronta dualista de bem e mal, certo e errado para direita e esquerda, não caia nesse papo. É que provavelmente ele ainda não se atualizou. Quem sabe até, para não ser injusto, ele tenha criado um contraponto atonal para a situação vigente. De resto, o discurso será sempre o mesmo: alimentação, saúde, habitação e educação com soluções mirabolantes e nomes de pessoas, não programas de governo. Já que temos que votar, que o façamos com a consciência de que o mundo é outro, sem dualismos de direita e esquerda. Sem mitos nas urnas.

27 de abr. de 2010

Alice no País das Maravilhas

Lewis Caroll. Uma inocente história infantil. Historinha difícil. Um mundo de maravilhas com uma maravilhosa rainha que manda cortar cabeças. O romantismo do final do século XIX revisitado pelo vandalismo das execuções medievais. Claro que, como toda aventura romântica e romanesca, alguém necessariamente precisa encarnar o mal, pois o bem e o heroísmo só existem em função dele.
Assim como Édipo, uma história que leva a inúmeras interpretações e viagens mentais. Um mundo de fantasias cujo portal é a toca do coelho. Ali, naquele eterno aión, o eterno tempo do “logo depois”, deixa-se a realidade para dirigir-se ao mundo da fantasia. Dentro do mundo da fantasia, questionamo-nos se não havíamos vivido a fantasia no mundo anterior. É como ficar rico de uma hora pra outra: a época que se era pobre foi apenas um sonho ruim.
Uma menina curiosa. Força dominante a curiosidade do homo sapiens. Após perdermos o medo, graças ao uso do fogo, das ferramentas, do Oráculo de Delfos e do notebook, a curiosidade passou a dominar os corações. Alice poderia muito bem não ter entrado onde o coelho atrasado entrou. Poderia não ter dado bola à neurose constante de um coelho escravo do cronos. Mas não. A curiosidade da infância remanescente a levou para dentro de um mundo novo. Melhor do que Platão. Na história da caverna, não fica explícito o que move o homem que se soltou das amarras, a sair da caverna para descobrir o mundo lá fora. Há sempre uma força que nos empurra, que nos move a fazer coisas novas. Há quem diga que quando essa ou outras forças diminuem ou acabam, morremos em vida.
Dentro de um mundo fantástico, Alice depara com o que todo pré-adolescente, via de regra, começa a enfrentar: valores sociais. A consciência ganha maior dimensão; os sentidos estão mais aguçados. A educação punitiva insere os grilhões do raciocínio. E aí? Obedeço aos meus desejos insurgentes, ou me mantenho firme nos valores que aprendi dos meus pais e tutores? Valores estes, inculcados em mim, fortes, pungentes, que se digladiam com desejos dos quais eu nem tinha conhecimento. Época complicada aquela em que não somos ainda adultos para ficar num grupo de adultos conversando na mesma freqüência deles, nem crianças para ficar brincando de stop. Precisa-se urgentemente de pré-adolescentes para convivência mútua, porque só eles se entendem entre si.
O filme que está sendo lançado não poderia vir em melhor hora. Uma hora em que se discutem valores sociais e individuais. Valores que eram defendidos com a faca nos dentes e hoje, dentes e facas os atacam ferozmente. Quem, com mais de 35 anos, não se lembra da letra de Rock das Aranhas do Raul? Ou aquela famosa passagem da música do Tim Maia: “... pode o que vier, só não pode dançar homem com homem, e nem mulher com mulher”. Quem cantaria, nos dias atuais, essas músicas com intenção séria de levar adiante essas mensagens? Nos anos sessenta, cantava-se o amor romântico, cujo objetivo último era a família e o casamento. Hoje, Rita Lee, muito feliz, canta o “Amor e o Sexo”. Na política então, não há melhor território para se discutir (e tentar resgatar) valores antigos. Ouviremos palavras há muito esquecidas como habitação, saúde, salário... Ouviremos também as palavras honestidade e compromisso, como se elas habitassem o outro lado da toca do coelho. Entraremos nas urnas, como que para decidir qual rainha continuará mandando cortar cabeças. Nesse momento, estaremos dentro da toca do coelho. Logo depois, sairemos de lá e continuaremos vivendo nossas próprias maravilhas.
A força do sonho geralmente é construir uma realidade fantástica. Algumas vezes não queremos acordar e outras, acordar o mais rápido possível. O que separava o mundo real do mundo das maravilhas era a imagem caricaturada dos personagens e suas personalidades meio doidinhas. Mas isso no século XIX. Hoje, pelo visto, não sei mais em qual lado da toca me encontro. Melhor tomar a pílula azul e continuar dormindo no casulo da Matrix. Os coelhos continuarão neuróticos, os chapeleiros malucos e as rainhas cortando cabeças, ainda que figuradamente.

22 de abr. de 2010

Uma Cidade Longe Demais

A operação Market Garden da Segunda Guerra Mundial, idealizada por Eisenhower foi um fracasso aliado, no cômputo geral. Perderam-se muitas vidas e não se ganhou nada, praticamente. O filme Uma Ponte Longe Demais, com grandes nomes do cinema da época, ilustrou esse fato histórico muito bem. A ponte do rio Arnhem, na Holanda, que daria livre acesso à Berlim e provocaria o fim da guerra. Ledo engano.
O Brasil de nossos avós e bisavós conheceu uma época conturbada de revoltas populares e militares. Aquela famosa e romântica foto da Revolta dos dezoito do Forte de Copacabana ilustra a facilidade com que se chegava ao Governo Central, na época, o Palácio do Catete. Era possível organizar uma revolta contra o poder no Brasil indo a pé, e se possível, adicionando correligionários ao movimento. Fantástico. Quantos governos atuais poderiam ter caído se o Palácio do Catete continuasse sendo a sede do governo brasileiro. O Brasil caminhou para uma descentralização do poder nos anos 50, mas claro, uma força contrária e muito conveniente, tratou de centralizar o poder geograficamente, criando o que eu chamaria de uma Cidade Longe Demais.
Não sou adepto da teoria de Ratzel, do determinismo geográfico, mas construir Brasília naquela região próxima ao lago Paranoá, foi de uma genialidade admirável. Longe de tudo e de todos. Muito convém isso num país continental como o nosso. Difícil acesso, fácil manipulação. E sem um povinho pra ficar enchendo o saco quando o aumento dos aposentados não é nem de longe satisfatório.
Uma cidade planejada. Patrimônio histórico da UNESCO. Orgulho brasileiro. O sonho premonitório de Dom Bosco. Não há turista que não se maravilhe com a beleza artística que a cidade propõe. Existe uma harmonia com o cenário natural, produto de uma mente brilhante como o Niemayer. Uma nova capital para um novo Brasil, que continua com essa frase de marketing eterna: um novo Brasil. Um barbudo há 2000 anos atrás chamaria isto de túmulo caiado. Expressão interessante.
Imagino o centro do poder nacional aqui, ao lado da capital gaúcha. O laçador, obviamente, pairaria orgulhoso à frente da Praça dos 3 Poderes, destacando-se sobre os candangos. O chimarrão seria bebida obrigatória no Senado. Nas campanhas presidenciais, Brasília se encheria de xotes, vaneiras, vaneirões e o que quer que seja a tchê music. Descontente com alguma votação da Câmara ou do Senado, eu pegaria um ônibus turístico e iria com cartazes e alguns compatriotas reclamar do aumento vergonhoso do salário mínimo. Veria senadores almoçando nos restaurantes chiques de nossa capital. Passaria por eles e gritaria: Libertas Quae Sera Tamen! Sabendo que não me dariam a mínima. Uma realidade próxima a mim, palpável. Lá está o poder político. Lá está a amante grávida deste, daquele...
Conviver com o poder, dá ares de poder. Mas Porto Alegre não é estrategicamente viável, então, o poder encontra-se afastado, inacessível. Ônibus é muito caro e demorado. Tenho que trabalhar, não posso me dar ao luxo de lutar contra as injustiças políticas faltando o emprego por uma semana ou mais. O povo vota, mas não pode gritar seu descontentamento. E o povo que mora perto do poder, precisa do poder para vender seu peixe. Rabos de peixe presos.
Brasília, a grande capital da Terra Brasilis. Comemora os 50 anos de sua inauguração. Dívida externa triplicada, uso do dinheiro da Previdência, um presidente bossa-nova, mas uma maravilha arquitetônica difícil de ser igualada. Brasília é a tevê de LCD 80 polegadas numa casa onde a renda familiar é de setecentos reais por mês com direito a "gato" na instalação elétrica. Construída para reinar solene. Não consigo alcançá-la, é uma cidade longe demais. Nem os dezoito do forte conseguiriam. Feliz aniversário, Terra do Nunca (na história desse país...)

12 de abr. de 2010

Prisões

Fausto Silva. Desde os tempos do Perdidos na Noite, grande programa de auditório, não o sigo. Bem, não assisto o domingão, mas nesse domingo, esperando o Fantástico a fim de garimpar uma crônica, deparei-me com aquele Fausto dos bons tempos: sensível, humano, e sutilmente, irônico.
Antes de iniciar o Fantástico, Fausto deu uma declaração que me fez refletir muito sobre a condição humana do século XXI. Fez um comentário choroso, agradecendo aos colegas de trabalho que estavam ali trabalhando com ele. Ele que tinha enterrado o pai, no dia anterior.
Estamos então, tão comprometidos com nossos afazeres e com nossa posição social por causa do trabalho? Não importando se foi o Fausto que quis trabalhar ou se foi a Globo que o “aconselhou” a não faltar o domingo à tarde, tão combalido por programas sem criatividade. Não é esse o centro, quem tomou a iniciativa do “show must go on”. Mas a questão que por detrás de uma imagem pública, do apresentador, tem um ser humano com um pai, que segundo ele, era um amigão.
Muito remotamente, lembro-me de uma vez que o Sílvio Santos não pôde apresentar o programa de domingo. Foi nos anos setenta. Uma vez apenas. Foi então que conheci o pedaço de carne por trás da voz: o Lombardi. Lembro-me que foi ele quem apresentou o programa.
Alguns filmes de hollywood apresentam essa problematização do mundo pós moderno: da escravidão que o trabalho proporciona no século XXI. Pais que são desafiados pelos filhos a passarem mais tempo com eles. Carência afetiva, o primeiro passo para a violência. Curiosamente, lembro-me do meu professor de história da faculdade dizer que havia lido um livro de ficção dos anos sessenta, afirmando que, nos anos oitenta, as máquinas fariam todo o trabalho do ser humano, e que este trabalharia apenas duas horas por dia. Pois bem, o que se vê é totalmente o contrário. Não há mais sábado nem domingo para alguns setores da produção. Na China não existe semana inglesa. Trabalha-se até no domingo, e nesse dia se sai mais cedo. Empresários saem com amigos para um jantar e acabam falando de trabalho. Transformam diversão em reunião. Fazem reuniões-almoço com o intuito de não perder tempo. Filhos atirados ao vídeo game enquanto pais atiram-se aos seus projetos, porque? Ou a carreira tornou-se a coisa mais importante do mundo, ou tem-se muito medo de perder o emprego, ou o cliente. Não creio que este seja o problema do Fausto.
Trabalho. Rendo-me aos grilhões da produção moderna, que exige do ser humano cada vez mais iniciativas e criatividade. De competitivos passamos a neuróticos. De neuróticos a bipolares. E de bipolares a contraproducentes. Porque buscamos a compensação para todo o nosso esforço. E essa compensação é mais esforço ainda. Não é à toa que o tempo tem passado mais depressa até para os jovens. Nem os pais podemos mais enterrar.
Faço minha as palavras sentidas de Fausto Silva. Admiro-o não só como profissional, mas também como pessoa. E fico consternado com seu sofrimento. Na idade média, algumas mulheres vestiam o preto do luto pela vida toda. Luto durava dias, em memória do ente querido que se fora. Hoje, vale a máxima “deixe os mortos enterrarem seus mortos”.
A prisão pode ter barras imaginárias, tal como o canarinho que mesmo com a portinhola aberta, não sai da gaiola. Podemos achar que é liberdade uma coisa que é, na realidade última, uma prisão. Baseado nisso, quando minha filha mais nova me conclama a um jogo de vôlei, não penso duas vezes em gritar pra ela: VAMOS PARA A PRAÇA!

10 de abr. de 2010

Ficha Limpa

“À mulher de César não basta ser honesta; tem que parecer ser honesta”. Essa frase atribuída a Cícero e recontextualizada para o momento atual, é de uma subjetividade excitante. Sim, porque hoje se dá mais força à ação do parecer do que para o “não basta”. Aparências, imagens, atitudes em frente às câmeras, tudo documentado. E produz-se a honestidade.
Honesto e trabalhador. Era esse o bordão paterno de minha adolescência. Claro que na hora de fazer o imposto de renda, o importante era o trabalhador. Honesto, nesse caso, era entregue à orgia do subjetivo. Dobrar uma esquina sem dar sinal depende do momento. Mas todos somos honestos. Passar a roleta (ou catraca) do ônibus com filho acima de cinco anos como se tivesse cinco, também não é desonestidade. Afinal, somos todos trabalhadores... e honestos. Nem vou falar de furar a fila porque “alguém” ficou guardando lugar para os amigos. Seria ousadia demais.
Ficha limpa. Tiradentes e os insurgentes contra a matriz lusitana. Um alferes, que tinha, digamos assim, “ideias malucas” acerca de liberdade, igualdade e fraternidade. A ficha dele sujou. Imagino-me sendo um funcionário da realeza escrevendo o laudo de execução, meus olhos talhados de lágrimas por ter cumprido com minha função pátria de lavrar o auto do contraventor do Império Português. Fui honesto, fui trabalhador. Tiradentes não. Não tinha a ficha limpa.
DOPS. Departamento de Ordem Política e Social. Quase fui fichado uma vez, por sorte escapei. Participei de uma passeata pelas diretas em Porto Alegre, e sei lá porque as autoridades acharam que nossas inocentes e honestas musiquinhas entoadas com o coração da ideologia de esquerda, eram ofensivas demais à ordem pública, e, honestamente, os porcos (como eram chamados os policiais militares na época) desceram o cacete nos honestos manifestantes da tranqüila passeata. Vários presos. Todos com a ficha suja. Até o Rod Stewart foi fichado no DOPS. Hoje, não existe mais.
O que seria honesto? Uma pessoa sincera e que diz o que pensa, é comumente confundida com uma pessoa honesta. Pode ela estar dizendo o maior disparate, mas pelo tom de voz firme e empostado, ela está dizendo o que pensa, portanto, honesta. Seria honesto pagar uma tevê em 24 vezes, mesmo sabendo que, desonestamente, os juros praticados pela loja estão muito longe de serem os determinados pela Constituição? Honesto seria sim, controlar o impulso. Em resumo, a honestidade é um conglomerado de princípios e ideias acumulados ao longo dos séculos, que todos sabem que existe, mas ninguém sabe dizer exatamente o que é. Caímos novamente na orgia subjetiva.
Que político terá ficha limpa? E que ficha será considerada limpa, realmente? Aquela do representante do povo que for produzido biopoliticamente? Aquela do político que continua, por baixo dos panos, a distribuir cestas básicas em troca de votos da população carente? Nada mais que o voto de cabresto revisitado.
Minha solução é simples, e por ser simples, soará idiota, não PARECERÁ ser razoável, porque foge ao academismo. O político de ficha limpa será aquele que se eleger com seus próprios méritos, não se ligando a nenhuma corporação que prenda seu rabo depois da eleição. Será aquele que não aceitará jantares de pessoas influentes, nem dirá sim a ligações no meio da noite para impedir esta ou aquela votação na câmara de vereadores, deputados ou senadores. Será aquele que quando vereador, não ficará sonhando em ser presidente da república. Será aquele que anda de ônibus, pois o dióxido de carbono dos carros aumenta o efeito estufa. Será aquele que não correrá cedo para votar aumento de salário dos políticos, mas aquele que será preso e terá sua ficha suja por ter organizado uma passeata intranqüila em prol de um salário mínimo realmente justo, ou uma forma mais justa de relação trabalhista. O político de ficha limpa será aquele conhecido por sua notoriedade, e não por sua fama, simplesmente. O político de ficha limpa terá, antes de tudo, um sentimento limpo de cidadania e cumprimento do dever. Exatamente como está escrito na Constituição.
A política brasileira, aquela que sonha com o óbvio, o do político de ficha limpa, vive da impunidade, mas esquece que antes da impunidade, os políticos vivem na imunidade, ou seja, criaram estratégias para PARECER serem honestos aos olhos do povo. Se for preciso, dançarão o reboleixon para angariar votos e depois de eleitos sumirão das vistas do público.
Proponho a ficha limpa pública brasileira: a de se anotar num papelzinho e colar na geladeira, o nome de todos os políticos que no passado fizeram algo que desagradasse o eleitor, e na hora do voto, levá-lo junto consigo para não esquecer de não votar naquele nome. Quem sabe, lá no plano de eliminação dos “menos limpos” não sobrará ninguém e a urna também poderá ficar “limpa”?

6 de abr. de 2010

Cultos, chiques, mas sim...ples.

Norbert Elias, em seu livro O PROCESSO CIVILIZADOR, Volume I, aponta para os costumes e hábitos da Alemanha do século dezenove. Gostaria de enfatizar a rigidez com que se produzia um Kulturrel (pessoa com alto nível cultural), todos os maneirismos, postura, linguajar, etiqueta, respeito às autoridades, aos mais velhos, aos pais, hierarquia e a tão famosa disciplina. Tudo era fleugmatismo. Não é de se admirar que o Dr. Freud, vienense, se preocupasse tanto com a histeria. Dado o plano de imanência da época, a constante vigília sobre os “bons costumes” era uma coisa causticante.
O que entendemos por boa educação é herança desse rizoma de normas disciplinadoras e punitivas da sociedade burguesa. Havia a necessidade de se diferenciar com certa consistência as classes sociais e não bastava que isso fosse demonstrado nas posses dos mais favorecidos: também o comportamento gentleman era uma diferença, uma força dominante na sociedade. Comer com a boca fechada (nos dois sentidos), não falar até que lhe seja dirigida a palavra; olhar nos olhos da pessoa com quem estamos falando, andar ereto, cabeça erguida, estar sempre bem vestido. Quando uma mulher levanta da cadeira, o cavalheiro levanta também. Curvava-se quando a mesma saía do recinto. Essa cena foi maravilhosamente demonstrada no filme KATE & LEOPOLD, e causa um pequeno e previsível espanto. Regras e mais regras que a sociedade moderna não mais pratica em sua plenitude, mas não esqueceu como norma de boa educação e bons modos. O velho senso comum dominando as mentes. Em resumo, quanto mais disciplinado, à custa de muita punição, mais educado. Hoje, vejo-me criando minhas filhas em modelos não muito distantes.
Os anos sessenta e setenta pregaram todo e qualquer tipo de libertação desses e outros costumes punitivos. Paz e amor (livre) era a frase da moda. Bem, esses jovens cresceram e tornaram-se pais. Alguns, donos de empresa de sucesso, outros, chefes de setor e outros, apenas outros. Como pais, ainda que inconscientemente, criaram seus filhos de maneira semelhante ao que foram criados. Foram disciplinadores, punitivos, mas com “flowers in their heads” ainda curtiam Janis Joplin, Beatles, Stones, Bob Dylan e Joan Baez.
A juventude dos noventa, filhos da juventude dos setenta, pregaram um outro tipo de libertação: a de que o jovem deveria ter sua voz na sociedade. Cidadania. Jovem vota, jovem derruba presidente, canta Nirvana, anda de grunge e participa de uma caminhada pela paz no Oriente Médio. Vai à balada, mas passa no shopping antes para conferir se não está fora de moda. Esses então serão os pais do século vinte e um. Aquele que ensina o filho a criticar, mas quando este aprende, não admite ser criticado. E o jovem de hoje passa no vestibular, mas também passa com o semáforo fechado sem culpa alguma.
No entanto, mesmo com todas essas disparidades, vemos um jovem despojado de diferenciais classistas. Arrumam-se, produzem-se, curtem as baladas, têm suas tribos como é próprio do ser jovem, e mantém laços dentro e fora do seu âmbito socioeconômico. Não dividem as festas por classes, dançam conforme seus gostos, que em geral, são variados. Vão a jantares chiques com seus pais, mas não se sentem desconfortáveis comendo um cachorro quente de carrocinha, nem um bauru ou salgado da Confeitaria do seu Zé da esquina. Todos muito chiques, com seus carrões estacionados na frente. E nem se deve ao fato que os restaurantes chiques não abrem no despontar do dia, e sim, pela própria curtição do momento.
Rio da minha juventude, em alguns aspectos, classista e racista. Era um sacrilégio ver uma loira abraçada a um afro-descendente. Metaleiro não ia à roda de samba (eu ia escondido). Velho não participava de festa de jovem. Tenho orgulho de ver minhas filhas livres desses condicionamentos.
Aqui em Porto Alegre, chamamos carinhosamente as carrocinhas de cachorro quente de “morte lenta”. O meu preferido é o da República com a Lima e Silva. É lá que eu vi esses jovens despojados que citei, e foi lá que eu senti a revolução do mundo pós moderno: junto ao convidativo cheiro do molho milenar do cachorro, um aroma de Chanel nº.5, um Givenchy, ou mais ousadamente, um Agnes B importado.
Novos paradigmas, novas concepções, novos comportamentos. E dê-lhe morte lenta nas manhãs de domingo, cultos, chiques e simples. Vamos ver o que o Norbert Elias do futuro escreverá sobre isto.

1 de abr. de 2010

Ursinha da Páscoa

Naquele ano, só se falava nisso, no país dos bichos. — Como? É tempo de renovação, de troca. Chega de governo dos machos. Uma fêmea no poder trará vida nova ao evento. E o mundo não é mais dos machos — bradava, emocionada a águia mãe. A Páscoa, grande evento no mundo animal, estava se aproximando e um grupo descontente com coelhos e ovos, clamava por mudanças. Estranha essa história. Coelhos são mamíferos, não botam ovos. Aventava-se maracutaia na coisa toda.
Maracutaia nada — defendia-se o coelho — há tempos, nós coelhos, branquinhos, fofinhos, levamos alegria ao país dos bichos, entregando ovos de chocolate. O castor interrompe: — Como assim, chocolate? Então não eram ovos de aves, naturais? Por acaso a ONG de proteção aos animais que se alimentam do cacau sabe disso? Ou alguém molhou a mão das garças fiscais? Bem mais tarde ficou-se sabendo que sim, mas o coelho jurou não saber de nada, era esse o seu bordão. — Nunca, na história do país dos bichos, se distribuiu tantos ovos quanto agora — abriu-se então, uma CPI para apurar o caso dos ovos serem de chocolate, mas os elefantes da justiça, lentos e arredios, demoravam-se a redigir o texto final do processo. A população, já acostumada, sabia que tudo acabaria em pizza, servida na taberna da raposa.
Assim era a situação do país dos bichos, uma enorme nação, que se estendia da floresta à savana. O castor, em solene comício, lançou-se a candidatura para substituir o coelho da páscoa. O coelho já via-se impossibilitado de uma reeleição, então resolveu apoiar a ursa, conhecida por sua juventude rebelde e revolucionária em prol da distribuição dos ovos de chocolate para todos e não somente para os filhotes dos predadores. O castor e seu séqüito de doninhas, ariranhas e arminhos viam a ursa como terrorista, com cara de mau e uma predadora igual aos predadores que ela tanto combatera quando jovem. Disputa difícil.
— Mas, a gente é obrigado a votar? — Sim, está contido na constituição que todos os bichos maiores de 16 até os 60 anos, são obrigados a votar. É um dever. Aliás, é um direito antes de um dever. As cotovias e os pica-paus argumentavam que isso não era democrático, a obrigatoriedade do voto, mas o povo em geral não discutia essa questão, tudo estava centrado em quem substituiria o coelho, e o principal, O QUE seria distribuído.
Desde que o leão abdicara de ser o rei e entregou o país dos bichos a uma república, o povo perdeu o referencial do poder. Os primatas, cultos, separados do resto da bicharada pela acadêmica posição de habitar no alto das árvores, alegavam que o verdadeiro poder era exercido pelas corujas, que detinham em suas mãos a comunicação e a mídia. Diziam, resignados, que nada poderiam fazer contra o poder da comunicação.
Houve até quem se candidatasse além da ursa e do castor. Animais sem grande representatividade, era o que se ouvia nas alamedas. A serpente advogada, por exemplo. Já carregava nas costas um histórico negativo de astúcia e traição. Mas era da nobre profissão dos advogados, missão reservada a quem fosse cobra. Também tinha a vaca, professora, psicopedagoga, forte, resoluta, de uma classe que todos dependiam, mas que carregava uma fama ruim, de simplesmente ser vaca. E, além do mais, a alcunha “Vaca da Páscoa” não cairia bem.
Tradições. Muitos viviam sob o jugo das tradições. — Pra quê mudar? Por quê, mudar? — Páscoa era páscoa, todos sabiam disso. Era coelho, primavera, renovação, ovos, e era isso. Não. Fazia-se necessário acompanhar os ventos da mudança. A ursa não distribuiria ovos de chocolate, não iria se ligar a falcatruas do passado. Ela seria pioneira, e inauguraria os famosos “Favos de Páscoa” e o mel seria a nova tradição da festa anual. O castor promoveria uma ideia nova, mirabolante, mas que ninguém sabia o que era. E os outros candidatos? O que estariam preparando?
Todos iriam votar. Todos TINHAM que votar. Escreveriam a história, à força, não por livre vontade. Até que um primata, ao pesquisar as fontes históricas descobrira que páscoa não estava ligada a ovos e coelhos. E o mais importante: o país dos bichos ficava no hemisfério sul, portanto a páscoa não era na primavera, mas na entrada do outono. Então, a renovação era uma falácia.

Feliz Páscoa. Ho...ho....ho... ops.

29 de mar. de 2010

Bode Expiatório

Pobre bode. A comunidade judaica tinha um costume ritual de levar um bode ao deserto jogando nele todas as culpas dos homens, a fim de que os pecados fossem lavados e a consciência ficasse tranqüila. Bom para um reinício de atividades pecaminosas. E lá ia o pobre bode, novamente para o deserto. A igreja católica jogou o suplício do bode para o sacerdote, instituindo a confissão, antes da sagrada eucaristia. Bem, na Europa medieval não existiam desertos escaldantes, tanto melhor para o clérigo. Importante serviço de informações. O padre de uma paróquia era o dual core da época: recebia e processava todas as informações pecaminosas de uma comunidade, usando-as como bem lhe aprouvesse. O mundo moderno diminuiu o fardo desses sacerdotes, criando algo mais técnico: o psicoterapeuta, e com um plus: podia-se contar o maior dos pecados, sem ter que agüentar a expressão de reprimenda do sacerdote. Bem, quanto ao bode, esse pobre animal não reprimia ninguém, ou se reprimisse, nenhum sacerdote judeu entenderia sua linguagem mesmo. O psicoterapeuta então, leva os pecados modernos, todos, subjetivamente justificados por transtornos, síndromes e outras psicopatias. É tanta coisa que já se discute se existe ou não uma normalidade psíquica. O fato é: agüentar as culpas não é para o indivíduo; há que se compartilhar, há que se expurgar.
O termo culpa ganhou uma nova dimensão, chamada polidamente de “responsabilidade social”. Aqui, em Porto Alegre, numa faixa de segurança onde não tem semáforo, basta que o pedestre estenda o braço para frente a fim de que o motorista deixe-o atravessar. Não é uma obrigação do motorista e sim, gentileza. Constrange. Muita gente não dá bola, mas se o motorista passa, não tem responsabilidade social. Às vezes passa tão rápido que não dá tempo para a culpa. Outro exemplo: o dióxido de carbono saído do escapamento dos carros está em segundo lugar no Brasil como contribuinte para o aumento do efeito estufa, um agravante ao aquecimento global que o planeta vem atravessando. Entretanto, a venda de automóveis só viu crescimento nesses últimos cinco anos. Mais automóveis, mais dióxido de carbono; mais automóveis, mais rodovias, menos ciclovias. E andar de bicicleta é tão saudável, pena que não dá status. A gatinha não vai querer andar no banco de trás de uma bicicleta dupla e ainda ter que pedalar. Então, expele-se cada vez mais dióxido de carbono na atmosfera. Aí vem a conscientização de grupos ecologicamente corretos. E com a consciência do erro, vem a culpa. Não a culpa do hebreu antigo, ou do europeu medieval, mas a culpa pós moderna, do “todo mundo faz mesmo”. Ainda assim, a culpa está lá, impressa numa parte do cérebro em que se sabe muito bem que estamos fazendo algo de errado e que esse erro pode prejudicar a nós mesmos e às gerações futuras. Algo precisa ser feito. O deserto de nossas almas clama por novos bodes.
Então, eis que a redenção aparece do mesmo lugar onde se criou a culpa: das organizações de proteção ao meio (desculpem-me, mas “meio ambiente” é uma redundância, por isso não uso o termo). São elas que nos conscientizam do problema e de nossa participação nele. Ao mesmo tempo e nos mesmos moldes das principais religiões do mundo moderno, essas organizações que criam a concepção do erro, criam, ao mesmo tempo, a expiação das culpas. Nada se cria, tudo se copia.
A água potável, em quantidade, é a mesma há milhares de anos. O que aumentou foi o seu consumo. Também se poluiu muito alguns recursos hídricos importantíssimos para a vida. Gasta-se cada vez mais energia elétrica. Também né, quem mandou baratear o preço dos aparelhos de ar condicionado? Não me preocupo com o presente, mas rio copiosamente do futuro. O aumento da oferta de produtos eletro-eletrônicos que proporcionam conforto cresce em progressão geométrica, enquanto que a construção de novas matrizes energéticas cresce em progressão aritmética. Mas, voltemos à culpa e ao “bode digital”. Não é o consumidor que mais gasta água ou eletricidade. No quesito água, 70% desse gasto fica por conta da agricultura. No quesito eletricidade, a indústria tem os índices mais elevados de gasto. Mas, ninguém faz campanha pra agricultor ou industriário, afinal são eles que tocam o progresso. A culpa toda fica para nós, pobres bodes.
Bem, alguns dias atrás o mundo empenhou-se em manter as luzes apagadas durante uma hora, a fim de conscientizar-se da economia de energia. Um bode, mas com um “quezinho” de hipocrisia, que aliás, nem é mais pecado. O termo hipocrisia foi substituído pelo termo “papéis”. Mas, mesmo que alguém não tenha participado da campanha, a culpa social foi expurgada. Economizou-se energia, alguém o fez por mim. A sociedade cumpriu com a responsabilidade social, e eu nem precisei participar.
Paliativos. Eles existem enquanto não é inventada a solução maior para um problema. Melhor e mais fácil do que exterminar com o pecado é expiá-lo constantemente. Afinal, pecados vêm de desejos do ego. E desejo, ninguém segura.