2 de mar. de 2010

Estando Lá

Cinéfilo. Caracterizo-me como tal. Amo a sétima arte. Não importa se é cinema, dvd ou blue-ray. A forma. O conteúdo. O todo. Não há filme que tenha assistido que não possua algum tipo de reflexão ou conhecimento específico. O que um dia foi “ficção científica” hoje pode ser taxado de “ciência possível”. Rio muito da lembrança de ver Kirk comunicando-se com a Enterprise por meio de um transcoder e vinte anos depois me comunicando com a nave-mãe através de um telefone celular. A ficção perde o encanto quando vira hábito.
Existe um filme, meu preferido, dentre todos que já assisti nos meus quarenta e lá vai pedrada. Na minha opinião, o mais inteligente que assisti, e com 0,00023% de efeitos especiais em relação a Avatar. O nome inglês do filme, em detrimento à versão portuguesa do título, já diz tudo: “Being There”. Simplificando: estar no lugar certo na hora exata. Isso, claro, tendo como centralidade e objetivo último da vida a fama e o poder. Nesse ponto, o filme é de um extremismo incrível. Do nada ao tudo. E como esse filme é do final da década de 1970, peço licença para analisá-lo. Azar o seu se não o viu ainda. E não me peça para cantar a trilha sonora.
Chance. Esse é o nome do protagonista, vivido por Peter Sellers. O nome também diz tudo. No literal do inglês, acaso. Seu único conhecimento? Jardinagem, nada mais. Nunca saiu de casa. Ironia da vida moderna. Toda sua vida se passou no jardim da casa onde trabalhava. Chance já aparece adulto no filme. Uma única comunicação com o mundo exterior: a televisão movida a controle remoto sem fio (novidade tecnológica). Mudança drástica. A morte do old man, dono da casa. Chance vê-se obrigado a sair de casa, onde as coisas começam a acontecer. Um único momento, um kairós, o eterno momento presente, muda toda sua vida. Devido a um acidente, Chance acaba na casa de um magnata norte-americano, amigo íntimo do presidente da nação. Nessa cena, o nome do filme ganha toda sua significação. Ele estava lá.
Vivemos numa virtualidade de metáforas, e dentro delas, vivemos de cargos e o status social que isso nos proporciona. Ser o chefe do setor de Abastecimento Logístico de uma empresa. Nome chique. Só com esse nome, sinto vontade de ir trabalhar engravatado. Mero idealismo. Ao chegar no setor de tão garboso nome, deparo-me com o Almoxarifado, no qual sou o único funcionário. Chefe de mim mesmo. Mas o que importa é o que está na carteira. Dentro dessa lógica e por um erro de interpretação, o nome Chance acaba ganhando sua versão chique: Chauncey Garden. Pomposo demais para um jardineiro, mas até aí ninguém sabia que ele o era.
Ben, seu novo amigo, podre de rico, interpreta mal sua história à mesa do jantar e o tem como um empresário falido, vítima de impostos e da selvageria do sistema. Ben encontra-se com o presidente, Chance participa. Uma interpretação metafórica da prática da jardinagem faz com que o presidente o cite em um dos seus discursos. Novamente, o título do filme ganha significação. Chauncey Garden, estava lá.
Tudo no filme é visto como metáfora para análises sobre a situação de um país no campo da economia. Ao ser citado, Chance vira alvo do poder virtual do mundo moderno: a mídia.
Jornais. Entrevista na tevê. Frases curtas, perguntas curtas, todas interpretadas como ironia pura ou como uma profunda análise da situação. Peter Sellers, genialmente, transmite uma aura mesclada de tranqüilidade, convicção e sinceridade, agravado por seu sorriso bobo, de quem está apaixonado e no mundo da lua. E o pior: não possui um passado. É um Zé ninguém, mistério total.
Ben à beira da morte, apaixona-se pela candura de Chance, tornando sua jornada final um fardo menos pesado de se carregar. Tranqüiliza-se com o fato de confiar a Chance a continuidade do seu legado, inclusive de sua mulher, Eve. No momento crucial do filme, ironizando o acaso, decide morrer por conta própria.
No cúmulo da bizarrice, apenas o espectador e o médico de Ben sabem que Chance não passa de um jardineiro. Essa potência de Chance, de ser um total desconhecido no meio do poder é a força que o leva a ser considerado como um nome à sucessão presidencial do país mais poderoso do mundo (na época, claro...hoje, bem...). Do nada ao tudo. Para Chance, de um jardim a outro. Penso que isto explica a versão em português do filme: Muito Além do Jardim.
Chance é um ser pueril. Fala o que sente, tendendo a natural visão otimista das coisas e de maneira suavemente convicta. Sem rodeios. Olhar lânguido, que nos faz querer abraçá-lo efusivamente. De uma hora para outra transformou-se em Chauncey, porém permaneceu imaculado pelas forças agressivas de um mundo hostil. Uma linha de fuga num território de linhas estriadas.
Essa é a magia da sétima arte. A prática da utopia. Luto com força titânica para ser um Chance (embora o desejo do Chauncey seja freqüente). Um mundo de Chaunceys, metafórico. Conscientemente ou não, esperamos também por uma chance, por um “estar lá”. Quem já esteve lá sabe muito bem disso.
Procure assistir o filme e poste algum comentário sobre essa crônica. Ficarei feliz. Quem sabe esse não é o meu jeito de “estar lá”? Se não assistir, deixo essa crônica ao acaso.

Obs.: Essa crônica foi uma feliz sugestão do professor Alfredo, meu sincero amigo e irmão em todos os universos paralelos. A ele, minha homenagem.

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