29 de mar. de 2010

Bode Expiatório

Pobre bode. A comunidade judaica tinha um costume ritual de levar um bode ao deserto jogando nele todas as culpas dos homens, a fim de que os pecados fossem lavados e a consciência ficasse tranqüila. Bom para um reinício de atividades pecaminosas. E lá ia o pobre bode, novamente para o deserto. A igreja católica jogou o suplício do bode para o sacerdote, instituindo a confissão, antes da sagrada eucaristia. Bem, na Europa medieval não existiam desertos escaldantes, tanto melhor para o clérigo. Importante serviço de informações. O padre de uma paróquia era o dual core da época: recebia e processava todas as informações pecaminosas de uma comunidade, usando-as como bem lhe aprouvesse. O mundo moderno diminuiu o fardo desses sacerdotes, criando algo mais técnico: o psicoterapeuta, e com um plus: podia-se contar o maior dos pecados, sem ter que agüentar a expressão de reprimenda do sacerdote. Bem, quanto ao bode, esse pobre animal não reprimia ninguém, ou se reprimisse, nenhum sacerdote judeu entenderia sua linguagem mesmo. O psicoterapeuta então, leva os pecados modernos, todos, subjetivamente justificados por transtornos, síndromes e outras psicopatias. É tanta coisa que já se discute se existe ou não uma normalidade psíquica. O fato é: agüentar as culpas não é para o indivíduo; há que se compartilhar, há que se expurgar.
O termo culpa ganhou uma nova dimensão, chamada polidamente de “responsabilidade social”. Aqui, em Porto Alegre, numa faixa de segurança onde não tem semáforo, basta que o pedestre estenda o braço para frente a fim de que o motorista deixe-o atravessar. Não é uma obrigação do motorista e sim, gentileza. Constrange. Muita gente não dá bola, mas se o motorista passa, não tem responsabilidade social. Às vezes passa tão rápido que não dá tempo para a culpa. Outro exemplo: o dióxido de carbono saído do escapamento dos carros está em segundo lugar no Brasil como contribuinte para o aumento do efeito estufa, um agravante ao aquecimento global que o planeta vem atravessando. Entretanto, a venda de automóveis só viu crescimento nesses últimos cinco anos. Mais automóveis, mais dióxido de carbono; mais automóveis, mais rodovias, menos ciclovias. E andar de bicicleta é tão saudável, pena que não dá status. A gatinha não vai querer andar no banco de trás de uma bicicleta dupla e ainda ter que pedalar. Então, expele-se cada vez mais dióxido de carbono na atmosfera. Aí vem a conscientização de grupos ecologicamente corretos. E com a consciência do erro, vem a culpa. Não a culpa do hebreu antigo, ou do europeu medieval, mas a culpa pós moderna, do “todo mundo faz mesmo”. Ainda assim, a culpa está lá, impressa numa parte do cérebro em que se sabe muito bem que estamos fazendo algo de errado e que esse erro pode prejudicar a nós mesmos e às gerações futuras. Algo precisa ser feito. O deserto de nossas almas clama por novos bodes.
Então, eis que a redenção aparece do mesmo lugar onde se criou a culpa: das organizações de proteção ao meio (desculpem-me, mas “meio ambiente” é uma redundância, por isso não uso o termo). São elas que nos conscientizam do problema e de nossa participação nele. Ao mesmo tempo e nos mesmos moldes das principais religiões do mundo moderno, essas organizações que criam a concepção do erro, criam, ao mesmo tempo, a expiação das culpas. Nada se cria, tudo se copia.
A água potável, em quantidade, é a mesma há milhares de anos. O que aumentou foi o seu consumo. Também se poluiu muito alguns recursos hídricos importantíssimos para a vida. Gasta-se cada vez mais energia elétrica. Também né, quem mandou baratear o preço dos aparelhos de ar condicionado? Não me preocupo com o presente, mas rio copiosamente do futuro. O aumento da oferta de produtos eletro-eletrônicos que proporcionam conforto cresce em progressão geométrica, enquanto que a construção de novas matrizes energéticas cresce em progressão aritmética. Mas, voltemos à culpa e ao “bode digital”. Não é o consumidor que mais gasta água ou eletricidade. No quesito água, 70% desse gasto fica por conta da agricultura. No quesito eletricidade, a indústria tem os índices mais elevados de gasto. Mas, ninguém faz campanha pra agricultor ou industriário, afinal são eles que tocam o progresso. A culpa toda fica para nós, pobres bodes.
Bem, alguns dias atrás o mundo empenhou-se em manter as luzes apagadas durante uma hora, a fim de conscientizar-se da economia de energia. Um bode, mas com um “quezinho” de hipocrisia, que aliás, nem é mais pecado. O termo hipocrisia foi substituído pelo termo “papéis”. Mas, mesmo que alguém não tenha participado da campanha, a culpa social foi expurgada. Economizou-se energia, alguém o fez por mim. A sociedade cumpriu com a responsabilidade social, e eu nem precisei participar.
Paliativos. Eles existem enquanto não é inventada a solução maior para um problema. Melhor e mais fácil do que exterminar com o pecado é expiá-lo constantemente. Afinal, pecados vêm de desejos do ego. E desejo, ninguém segura.

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