23 de mar. de 2010

Medonismo

Foi realmente engraçado ver as cabeças, inclusive a minha, batendo na guarda da poltrona do cinema, quando um bólido veio na direção da platéia, no filme Avatar. A sétima arte começa o novo milênio com um plus: não desperta somente sentimentos e emoções; desperta também os reflexos. Falta pouco para os odores a fim de que a arte e a vida estejam equalizadas.
Vida. Um mosaico de sentimentos, emoções, sensações, intuições e um monte de outros “ões”. Não a vida em si, mas o que enxergamos dela. Todo esse caos de condições gera o que chamamos experiências. O conjunto destas experiências significativas geram lembranças. Estas se escrevem na história, chamada de Livro da Vida. Simplório, não?
Num passado lá não muito distante, as famílias em geral eram fartas na sua prole. Não somente pela falta de práticas anticoncepcionais mais eficientes, mas porque a mortalidade infantil era enorme. Ter um número considerável de filhos era uma maneira de garantir a continuidade de uma família sadia. E a vida não era lá um pps de fotos e frases bonitinhas. Era dura, muito dura. Nos anos setenta vi mulheres castigadas psicologicamente porque haviam casado e não tido filhos logo. Claro que não uma penca de filhos, mas filhos. Continuidade. Do nome, da família. E um churrasco em todo domingo em que alguém fizesse aniversário. Muitos filhos, muitos domingos. Então, para as classes menos privilegiadas o lazer resumia-se a pequenas possibilidades de acesso. Pequenos prazeres. E o constante sonho com prazeres maiores. Aos ricos, principalmente na Europa do século XIX, os acessos eram muitos, mas as exigências de uma vida aristocrática exigiam das crianças e dos jovens muitos sacrifícios. Então, curtir a vida não era lá uma filosofia reinante.
Lazer. Elemento essencial à vida e à sua qualidade. Beethoven retirava-se com freqüência ao bosque de Kahlenberg, ficando lá por horas. Mesmo surdo, “ouvia” o canto dos pássaros na primavera. Ir ao shopping comprar e comprar. O canto dos pássaros foi substituído pelo dvd da banda emo do momento. Formas diacrônicas de lazer, variadas, múltiplas.
Lazer moderno. O virtual, o simulado. A quem devemos isso? Tecnologia, superprodução, sim, mas não totalmente. Inventei um conceito: o medonismo. Sim, a perfeita mistura entre o medo e o hedonismo. A constante busca do prazer momentâneo e efêmero que gera um super apego à vida e um medo enorme da morte.
O curtir a vida ganhou uma significação diferenciada. Experimentar, aproveitar o máximo o melhor que a vida nos oferece. Antigamente, vivia-se para o trabalho, vetor de dignificação dos valores humanos. Hoje, ao contrário, trabalha-se para viver, e viver bem. Uma balada, um bar com música ao vivo, uma conversa gostosa (depois de uma tarde no shopping comprando e ouvindo os “pássaros”). Um filme, uma pizza. Um game novo. Um cabelo novo. Uma tattoo nova. Um carro novo.
Mil possibilidades, só uma questão de acesso. E, logicamente, dinheiro. Claro, trabalha-se e muito por conta desse acesso. Ao prazer de momentos passa-se por muito estresse. Emocional, físico, preocupações, competitividade.
Dois dos lazeres que mais me davam prazer quando pré-adolescente eram jogar bola na calçada e andar de bicicleta na rua. Na época, a criminalidade reduzia-se à classe dos ricos. A média não estava nos planos dos assaltantes. Hoje, roubar qualquer coisa que permita comprar uma pedra de crack virou moda. O curtir a vida, o hedonismo compete diretamente com o medo. Eles não são contrários, eles se completam, porque um é a força do outro. Medo do assalto, do seqüestro relâmpago, da venda de órgãos, do rapto de meninas para o comércio de escravas brancas. Crianças e adolescentes confinados em apartamentos na frente de computadores, inertes, interagindo com o virtual, engordando, fabricando transtornos alimentares. Pais com medo, filhos com medo, sociedade com medo, buscando cada vez mais, prazeres novos, rápidos, porém intensos.
A vida, tão fácil conceituar ficou difícil de definir. Hedonistas. A indústria do lazer está aí, produzindo novidades tão rápido que não temos nem tempo de aproveitar a que estamos vivendo. Os ricos, em tempo real, os pobres, com alguns anos de atraso (não comprei minha tevê de LCD ainda).
Talvez seja uma boa hora para refletir algumas coisas. Parar de correr atrás do vento da tecnologia, da corrida desenfreada do mundo da superprodução e ir um pouco mais devagar, ao exemplo de nossos antepassados. Amar a vida em toda sua plenitude, mas com ela, aprender também a morrer, e ver nisso, uma coisa boa, naturalmente. Afinal, a cada dia que passa, aproximamo-nos mais da morte. Que ela caminhe ao nosso lado, sem medos. Rindo, aliás, com ela.
A vida nos espera, sempre no amanhã. Sem medos, sem receios. Ouça os pássaros. E olha que você não é surdo, colocando-o num patamar bem acima de Beethoven. Ele, com certeza, daria tudo para ouvi-los.

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