6 de fev. de 2010

Filho da Crise

O que seria da personalidade de uma pessoa se ela ouvisse “não posso, não tenho dinheiro” durante toda a infância, onde o cognitivo e o emocional ainda se confundem na busca do por quê? Esse vetor de potência, intenso, repetido inúmeras vezes proporcionará força de vontade, vontade de crescer, ou produziria um rol de atitudes ambiciosas, de conseguir o que se quer a qualquer custo? Ou até mesmo produzir um estado perene de depressivo derrotismo e a auto estima abaixo do pé da cobra (ou de-cabra)?
Sou um filho da crise. Não me lembro ter ouvido na história desse país um “somos desenvolvidos” ou “nossa economia é tão estável quanto qualquer país rico”. O que ouvi sempre foi um “estamos melhorando” ou “somos o futuro”. Na hora cívica então, o discurso era sempre o mesmo: “as crianças são o futuro da nação”. Não sou mais criança. Sou adulto. Ainda se esbraveja essa frase em discursos e propagandas de tevê. Penso que deve ter a mesma significância do “fiado, só amanhã”.
Quando nasci, havia seis meses os militares tomaram o poder. Crise política. Confusão. Um Ato Institucional atrás do outro ao longo dos anos de minha tenra infância. Economia “estável”, milagre brasileiro. Salários baixos, mas preços congelados. Medo. Repressão. AI-5. Perseguição. Um professor meu de história, já no comecinho do ano letivo, desapareceu. Conversas ao pé do ouvido. Desconfianças. Entrei na faculdade de história e um colega nosso tinha a fama de pertencer ao CNI . Cuidávamos o que dizíamos e como dizíamos.
Fim dos setenta, inicio-me no mundo do trabalho. O salário mínimo altamente defasado, perda do poder aquisitivo. Um vinil apenas por mês. Um cinema, um tênis Bamba. A calça Levi’s era um sonho distante. Pais ecoando um “estuda para ser alguém”. Não fiz medicina nem direito. Não sou alguém. Sou algum.
No meio dos oitenta, abertura política, Fafá cantando o hino daquele jeito, eleições. Plano Cruzado, já ganhava mais e melhor, mas o dinheiro não tinha valor. Quando os preços congelaram, eu paguei ágio. Passei a trabalhar mais, ganhar mais, mas o preços subiam. A vida era cara. Casa própria era possível se eu acampasse ou invadisse um apartamento da COHAB. Continuei no “não posso, não tenho dinheiro”. Agora, era eu que não tinha.
Anos noventa. Plano Collor. Confisco do parco dinheirinho da poupança. Não me devolveram até hoje, isso sem falar nos depósitos compulsórios da gasolina. À crise econômica, juntou-se a crise política. Junto com o já consolidado “não posso”, adicionou-se o “será que poderei?” Corrupção, PC Farias, Anões, Zélia, Pedro, Impeachment, renúncia e mais um vice no poder executivo.
Meio dos noventa. Um presidente, dois mandatos. Plano real, a deflação roubou 27% do meu poder aquisitivo, que já não era lá essas coisas. O dinheiro voltou a ter valor, mas o neoliberalismo não podia taxar os preços. Os produtos e os meus sonhos continuavam caros. Para compensar liberaram crédito. Faca de dois gumes. Comprava-se, mas atolávamos, nós, classe média baixa, em cartões de crédito e cheques nada especiais.
Novo milênio. Esquerda no poder. Uma esquerda não tão canhota assim, já que imitava todos os movimentos da direita, confundindo-se. Bem, a inflação era mínima, mas o emprego também. O número de graduados aumentou nas metrópoles, a maioria no setor terciário, atulhando a concorrência. Crise política? Não. Econômica? Não. Crise psíquico-funcional mesmo. Salários baixos, mal reajustados, crise do medo. Medo de perder o emprego. E o emprego das mais variadas estratégias de manutenção do mercado de trabalho.
Hoje. Aumento do emprego, aumento da produção, corrupção, violência, copa do mundo e olimpíada comemorados como se fossem acontecer hoje. Pré-sal. A crise mundial (mais uma) entra no cenário nacional, faz diminuir o consumo, preços continuam altos, impostos mais ainda, mas linha de crédito aos borbotões, como salvamento. Talvez se descubra de um poço de “pré-salarização”, baseado em novas idéias, ou velhas mesmo, desde que postas em prática. Isso tudo porque não iria gostar de ver no meu epitáfio: “aqui jaz um filho da crise”.
Dizem que crise não existe. Dizem que nas crises nascem grandes idéias. Escrevo crônicas. Terá sido essa minha “grande ideia”? Ou uma estratégia pré-sal para sair da crise com a qual nasci e me acostumei?

Um comentário:

  1. Sim, interessante, eu conheci esse roteiro, eu ja vi esse filme e tb como vc ja escrevi uma cronica quase igual. Diferença: em 64 eu ingressava na faculdade, no demais tudo igual.
    mas vc amigo escreve bem pacas, vai sair da crise com certeza, eu saí....... nadando muito contra a correnteza e as ideias hipocritas de governos corruptos e incapazes.Acima de tudo e no final vc ainda será um VENCEDOR, É O MEU prognostico! Viva e seja feliz! Bj. noeli abs da cruz - POAlegre

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