26 de fev. de 2010

Deficiência

Um homem atrás de emprego. Toda segunda-feira enfrenta filas. Envia currículos pela internet. Conversa com amigos que o indicam para seus chefes. Na segunda tudo se renova, até aquela esperança perdida na sexta, o limbo no sábado e a ansiedade dos classificados no domingo.
Ele vive a segunda-feira em euforia, ao contrário de muitos que já entram no domingo à noite em depressão. Corre de uma empresa a outra, vasculha agências de emprego, acredita em sua capacidade e sua larga experiência em seu ramo de trabalho. Se ele fosse dono de uma empresa, com certeza contrataria um funcionário com o perfil dele. É um lutador, com uma resistência para vários rounds. Na segunda, nem o pastor evangélico mais fervoroso teria a fé que ele possui para conseguir uma colocação no mercado. Fez tudo o que estava a seu alcance. Dorme com a consciência do dever cumprido. Agora, vai.
A terça-feira chega. Acorda cedo, com a mesma tenaz do dia anterior. Celular com a bateria totalmente carregada, telefone fixo sem fio acompanhando-o qual cão de guarda. O negócio agora é esperar. Checa seu e mail profissional de hora em hora. Vem-lhe a mente sua última entrevista: “O senhor possui todas as qualificações que necessitamos. Acredito que em uma semana estaremos entrando em contato a fim de lhe contratar”. Uma semana... fecha nessa terça. Havia se dado muito bem na entrevista: boa apresentação, fala segura e convicta, olhos nos olhos, tranqüilidade, quesitos básicos de um verdadeiro líder. Seus esforços seriam recompensados. O traje para apresentação ao primeiro dia de trabalho, jazia no guarda-roupa, em total prontidão. A noite chegara e nada. Nenhuma ligação perdida, fixo mudo durante todo o dia. Amigos não atenderam e os que o fizeram só tinham respostas negativas. Mas nem tudo estava perdido. Ainda haveria uma quarta-feira pela frente.
E a manhã de quarta aparece com uma surpresa: sete e meia da manhã uma ligação. Não era sobre emprego. Era sobre um negócio mirabolante em que o investimento inicial seria uma bagatela em comparação ao que poderia se ganhar. Coisas do marketing de rede. O homem, no entanto, era escravo de um círculo vicioso. Gastando, suas economias diminuiriam e não era uma situação em que ele poderia correr risco. A frase “grandes conquistas dependem de grandes sacrifícios” não tinha, naquele momento, nenhum sentido para ele. Com as economias quase findas, ele já olhava para sua Fender Texana com olhar lânguido. Teria de vendê-la, mais cedo ou mais tarde. A quarta fechara vazia. E vazia ficara também sua esperança.
Quinta-feira. O dia da depressão de todo caçador de empregos. Afasia. Atirado em frente à tevê, flácido, desesperançado, impotente, assiste com ar desligado os programas que lhe veem à frente, lata de cerveja na mão, Chet Baker no ouvido, em total sinal de desolação. Barba por fazer, banho não tomado, nada, nem fome tinha. O que tinha sim era uma larga experiência na função, um currículo gordo e muita vontade de vencer trabalhando, como manda a cartilha neoburguesa de todo culto capitalista que se preze.
Sexta-feira. Ideação suicida. Não agüentaria mais uma semana de frustração. Estava, novamente, fora do mercado competitivo. O niilismo a que se entregava toda sexta só era superado pelo hedonismo da festa noturna, sempre com os mesmos amigos e amigas. Umas fáceis, outras, paixões e uma... inacessível.
Sábado é dia de jogo. Primeiro com os amigos, depois a tevê. Pela manhã fora a uma palestra sobre “Como Conquistar o Emprego de seus Sonhos”. Pagara uma grana federal e com certeza realizara o sonho do palestrante, ele e outros necessitados. Mas, como em toda palestra motivacional, esperanças renovadas. Jogou seu futebol, assistiu o do seu time, um filme e foi encontrar o domingo dormindo cedo. Tudo haveria de ser diferente, desta vez.
O domingo o impele aos classificados. Leitura nervosa, porém lenta e cautelosa. Cada círculo com a caneta vermelha, representava uma possível re-territorialização no mundo do trabalho e da dignidade. Muitos círculos, maior probabilidade de sucesso. Não era nem sonho, era necessidade mesmo. O círculo, símbolo da perfeição. Agora vai.
Novamente, uma segunda agitada. Filas, currículos, telefonemas. Na sua caminhada do final de tarde, encontrou-se casualmente com um velho amigo que, curiosamente, trabalhava na mesma empresa onde fizera sua última entrevista. Conversa vai e vem, acaba por descobrir que o cargo a qual se candidatara foi preenchido por um jovem de 25 anos que perdera metade da perna esquerda num acidente de carro. O homem, tristemente, lembrou-se do anúncio e suas palavras finais: “pessoas com deficiência serão muito bem vindas”. Num insight, ele descobrira também que tinha uma deficiência física, ditada por um mercado hiperativo e bipolar: tinha mais de quarenta anos. O único detalhe era que o governo não via isso como uma deficiência. Não existia um programa governamental para o “último emprego”, só para o primeiro. Essa sua deficiência gerava um déficit apenas para ele. Como gostaria de ter sofrido um acidente. A platina em algum membro seria detectada pelo sensor de metais de um banco, mas ao menos ele teria um emprego. Esperança? Humpf.

Ciúme (digital) de Você

Roberto Carlos que o diga. Os do Ultraje a Rigor também. Desdêmona sofreu nas mãos de Otelo. O assunto não poderia ser mais antigo e tão atual. Com suas linhas de fuga, é claro.
No meu passado infante, sentia-se ciúme. Hoje, se tem. Antes de assumir qualquer relacionamento, a pessoa já vem carregada de ciúmes. Já enxerga a relação com o filtro da possessividade e desconfiança. Pior. Os ciumentos de plantão têm hoje armas e instrumentos variados para alimentar o ciúme. O mundo digital. Este tem sido uma verdadeira fábrica de paranóias, muitas, sem cabimento.
Todos sabem o que é o ciúme e o que ele representa na vida emocional de uma pessoa. Há quem diga que um “ciuminho” esquenta a relação. Há quem diga que ele estraga. Mas, ele sempre estará lá. É a gasolina que nos move à loucuras, que frequentemente nos levam ao arrependimento posterior. E muito prozac.
Voltando ao assunto, o ciúme alcançou o ciberespaço. Tudo porque no mundo digital moderno a palavra de ordem é controle, observação. Ironia... a internet não é controlável. O ciúme carece do controle para subsistir. Mas existe um sem número de defesas contra isso: o celular que acabou a bateria, pois está no silencioso; apagar scraps que possam ser mal interpretados; bloqueios no MSN, etc. No namoro virtual, um simples oi pode virar caso de divórcio. Não se vêem, não se controlam, aumenta a ansiedade. O velho ditado “olhos que não veem, coração que não sente” não tem valor nenhum aqui, nesse território.
Nunca o olhar foi tão importante quanto no mundo atual. Como saberemos se aquelas palavras tão doces digitadas serão verdadeiras se não mirar o olhar alheio? Se não ouço seu tom de voz? A dúvida está contida na insegurança e ela é o botão de autodestruição da auto estima. Otelo bem o soube por causa do lenço. Nós, hoje, o sabemos por mensagens.
Num mundo onde a privacidade não é mais tão valorizada assim nos locais públicos, a observação passou a ser a principal máquina de controle. Não adianta espernear, ninguém quer viver sem o poder do controle, ainda mais quando se refere à pessoa amada. Hoje em dia, ao lado das juras de amor está o inquérito policial.
Foi o que aconteceu com Suzi, no seu ‘”otelo particular” digital. Seu namorado Júlio, promotor de festas, recebia vários scraps de amigos e amigas, alguns profissionais, outros pessoais. Suzi instalara um programa que gravava mensagens, mesmo que Júlio as apagasse. Uma mensagem, então foi o fim: “te espero amanhã no aeroporto, às 16h, não falte, é importante”. O coração de Suzi tornou-se uma usina nuclear. A cabeça rodava. Havia se preparado bem para pegar Júlio, mas em nenhum momento havia se preparado para o que fazer. Chorou, desesperou-se. Ligou para o celular dele, desligado. Noite, sem MSN. Meia-noite passada, Júlio liga, bêbedo, trocando palavras, Suzi desliga na cara. Na manhã seguinte o namoro acaba por orkut. Ele não luta, aceita. Ela o amava, mas não poderia conviver com aquilo.
Dois anos se passam, Suzi não confia em mais ninguém. Sente-se sozinha. Recebe um e mail de Júlio depois de todo esse tempo: uma foto de Paris, ao lado da namorada, Marie Elise. O texto que seguiu à foto, era assim: “há dois anos estou em Paris, consegui o emprego da minha vida, e esta ao meu lado é Marie Elise, minha namorada, casamos mês que vem, espero que tu estejas bem”
Era esse então, o nome da outra? Ela era francesa?
O saudosismo bate à porta muitas vezes, depois que o amor se vai. Ela revira e mails antigos e acha um que não deu muita bola na época: “Suzi, sei que não presta muita atenção ao que lhe digo, mas vou te dizer: amanhã me encontrarei com uma agente de uma multinacional no aeroporto, ela precisa viajar. Quer falar comigo sobre um emprego que almejo há tempos. Deixarei o celular desligado, e se der certo, me encontrarei com meus amigos no bar e de lá te ligo. Torça por mim. Beijo. Júlio.”
Onde estiver teu foco pensante, aí residirão teus problemas.

21 de fev. de 2010

Ano da Copa

Patriotismo. Sentimento em extinção? Não o estou defendendo. Não o defendo, muito menos o ataco (só não me fale mal do Inter). Afinal, o patriotismo é um sentimento. Sentimento é uma força. Contra ele não se argüi. Respeita-se somente. Esse é o senso comum. Creio que seja por isso que a frase tão famosa “política, mulher e religião não se discutem” seja tão valorizada. Estes três elementos estão intimamente ligados ao sentimento.
O ano de 2010 já começa com um sentimento velado de patriotismo, mais por uns, menos por outros. A morte de soldados brasileiros no Haiti gerou comoção nacional. Não lutaram em nenhuma guerra, mesmo tendo sido altamente treinados para isto. Estavam lá para garantia da paz. No entanto, a batalha foi muito rápida. Nem tiveram tempo de organizar defesa. A bandeira brasileira sobre os caixões na cena do discurso do presidente deu ao evento um cenário lúgubre de comiseração. Morreram pela pátria, os filhos da pátria. Longe dela.
Existem dois eventos que, curiosamente, não se separam e são também motivos para sentimento patriótico: são as eleições presidenciais e a copa do mundo. Elas acontecem sempre no mesmo ano, e não deve ser por acaso. A seleção brasileira era nas décadas de 1970 e 1980, o que nos salvava do escárnio de pertencer ao famigerado Terceiro Mundo. Tínhamos o futebol mais alegre e mais bonito, mesmo não vencendo o campeonato mundial. Chegávamos quase lá... e morríamos na praia. Bolas entregues de bandeja, pênaltis perdidos e conseqüentes ataques do coração de torcedores. Quantas bandeiras e cornetas jogadas fora pela frustração. Mas não perdíamos a esperança. Década de 1990, Brasil no mundo neoliberal da globalização. Conquistamos o tetra. Elegemos presidentes. Ano de 2002, inserção do Brasil numa aldeia global onde todos querem ser caciques, e o penta. Época de ouro. O país do futebol... E da corrupção, inflação, desigualdade social, criminalidade. Diferente de hoje? Pois é. Não vivíamos de bolsa isso, bolsa aquilo, mas até hoje, em algumas situações é “a bolsa ou a vida” .
Todo ano de eleição é importante, não porque haja eleição, mas por causa da copa do mundo. E o futebol conquistou o mundo. Até os EUA tem seleção e eu nem sabia que lá existem times profissionais. Classificam-se para finais de alguns torneios inclusive. Arrisco um palpite; a hegemonia norte-americana perdeu seu encanto quando a sua seleção perdeu de um a zero, em pleno 4 de junho de 1994. Um prenúncio de que no futuro o Brasil seria a grande potência da América. Os livros de história ainda citarão essa crônica como profética. Vejamos: 4 + 1 + 9 + 9 + 4 = 27; 2 + 7 = 9. Nove é o mês de setembro. A seleção norte-americana perdeu, na sua própria casa, de um gol, portanto, 01 = 2001. Foram 11 contra 11 naquele jogo, o que nos leva a uma conclusão profética: 11 de setembro de 2001.
Cálculos à parte, a atenção do brasileiro concentra-se na copa. A campanha presidencial inicia-se tarde, embora já saibamos praticamente quem está no páreo e quem vai fazer charminho até a última hora. Mas até o final de julho, quando acaba a copa, a campanha presidencial é uma mera sombra desta, resumida a eventos de noticiário e os velhos discursos sobre educação, saúde e educação. Mas o brasileiro lutará por Ronaldos ao invés de lutar pelo meio ambiente.
Torcemos todos por um país mais justo, livre da pobreza e da corrupção. Torcemos também pelo hexa. Essa torcida possui a mesma intensidade? Quer dizer, torcemos por um Brasil melhor tanto quanto por um hexa campeonato mundial? Ou, somos todos brasileiros apenas nas quartas de final? Não somos mais o país terceiro mundista que vivia de empréstimos. Além do que, nos últimos 20 anos, destacamo-nos em outras modalidades esportivas, tais como fórmula 1, judô, vôlei e natação.
Esse ano, pra variar, proponho um desfoco: maior concentração na eleição, no programa dos candidatos e suas promessas. A copa que fique para julho, que é o lugar dela. Normal para um país “democrático” que tem o voto obrigatório. Exercitemos a consciência e a responsabilidade de conhecer os programas de governo e cobrar promessas dos eleitos. Responsabilidade nossa de saber exatamente quem auxiliou a corrupção e quem nos fez de bobos.
Quem sabe essas práticas responsáveis não farão com que minha profecia esteja realmente certa, e o Brasil seja a maior potência da América um dia? Um bom hexa para todos, mas principalmente, um Brasil melhor para todos nós.

A Ansiedade da Hora

A Hora, menina ansiosa, indagava aos irmãos menores, o Minuto e o Segundo, por que o tempo demorava a passar. O Segundo, afoito caçula, responde prontamente: — porque esperas pelo moço dia 29, e hoje temos a presença do moço dia 15. O maior pergunta, pensativo: — por que não ficas com o dia 15, o de hoje? Podes apreciá-lo neste exato momento. Ela fita-o de soslaio e diz: o 29 é especial. Ele tem um charme que os outros não têm. Ele é forte, bonito, tem conteúdo e sempre que aparece, os próximos dias são diferentes e tudo é alegria. Hora quer o dia 29. Pena que o moço 15 retorna e tudo torna-se saudade e espera.
O avô Mês, lento e soturno, ouvindo a conversa, pôs-se a argumentar, solene: — Hora, querida, não viva a vida pela espera de um dia. São outros tantos que por ti passam e tu não os atendes. Quanto poderias aproveitar com os outros moços dias? A moça Hora se fez de rogada. Haveriam de passar os moços 15, 16 e assim por diante, até que chegasse o tão esperado moço dia 29. Ele sim, era único.
— Nada é único nessa vida, Hora — retruca a avó Anual, esse era seu nome. Mulher forte, que ao final de suas frases e períodos longos, como num texto em alemão, fazia todos refletirem sobre o passado, e automaticamente fazerem novos planos para o futuro. Sábias palavras que não mereceram a atenção de Hora. Em sua adolescência, tudo era rápido e lento ao mesmo tempo. No ardor da juventude, ela não queria saber o porquê, queria mesmo é que o tempo passasse.
O pai Semanal, entendendo o caso, interveio: — já fui assim, ansioso. Em meio a inúmeras alternativas, eu só pensava nos dias que encontraria minha amada, não é, querida? A mãe Quinzena, tranqüila, chegou à sala e juntou-se ao debate: — sim, querido, vivíamos dionisíacos dias: Sábado e Domingo. Chamavam-nos aos prazeres da carne e não víamos o tempo passar. Agora vivemos para os pequenos eventos que a bisavó Anual nos proporciona. Quisera as novas gerações aprender com os mais velhos e dominarem suas ansiedades.
A moça Hora escutava, mas não ouvia. Sua ânsia não a permitia pensar, e seu foco era apenas o moço dia 29 e todas as benesses que adviriam dele. Naquele dia, ela acordava antes dela mesma e ia se preparar para o grande encontro. Aprumava-se com melhor que possuía, desdenhando dos irmãos que caçoavam dela. Saía então para o tão esperado encontro.
Encontravam-se sempre no Banco da cidade, em frente ao caixa eletrônico. Seus dedos ágeis acariciavam a superfície do moço, que expressava um display de palavras de alegria a quem as entendesse. Encontro rápido, porém intenso. Chegava em casa, cheia de si, trazendo da mercearia doces para os irmãos menores. Saía cantando pela casa, sua alegria era contagiante. Neste dia, ou melhor, todo o dia 29, até a bisavó dançava.
Individualmente, cada um sabia o porquê da alegria, mas velavam-se em si mesmos. Sabiam por que o moço dia 29 era tão especial assim: era dia de pagamento. A Hora vivia para o fim do mês. O avô mês sorria ironicamente, para a cotidianice da vida. A bisavó Anual não conseguia criar uma reflexão maior sobre isto. O pai semanal, atrelado à igual condição, sentia-se impotente. A mãe Quinzena reclamava muito, mas nada fazia. Aos irmãos minuto e segundo, o tempo era muito curto o que não lhes permitia pensar sobre o assunto. À Hora, só restava o esperar, e viver a felicidade de um mês num dia apenas.

19 de fev. de 2010

Mais Show do que Reality

Incrível como algumas palavras exercem sobre nós pré concepções sobre o que entendemos por verdade. Realidade é uma delas. Nossa mente ocidental tem um foco especial nessa palavra. Ela parece explicar tudo sem dizer praticamente nada.
“O que é o real? Como você define o real?” Morpheus faz essa pergunta a Neo, atentando para o fato de que o real possa ser algo além de reações neuro-interativas. Perceberíamos a realidade de maneira diferente se pudéssemos enxergar tantas cores quanto uma galinha, ou mesmo ouvir infra-sons?
Outro evento instigante sobre o assunto encontra-se no best-seller O Código daVinci, no momento em que Leigh Teabing pergunta à criptóloga Sophie Nevau sobre aspectos do afresco A Última Ceia. Não há cálice. O santo graal não está na pintura. Escotoma. A mente vê o que ela quer ver. O significado de escotoma na medicina não é bem esse, mas vá lá. Vetores como educação e experiências de vida, traumáticas ou não, fazem com que o cérebro selecione o que vamos ver e observar. Sendo assim, o que percebemos da realidade, está condicionado aos nossos sentidos.
O termo reality show foi criado, em minha opinião, com o propósito de opor-se ao roteiro, à história pré-fabricada onde já se conhece toda a linha de eventos que leva a um determinado desfecho. Em outras palavras, deixar rolar e ver no que dá. Para alguns, uma reprodução do jogo da vida.
Em detrimento desse reality, a tela da tevê é uma só. O telespectador não escolhe a câmera, quem o faz são os produtores do programa, construindo a edição da história de um reality show. A câmera escolhida pela produção é o próprio escotoma.
Coreografia. É um conjunto de movimentos organizados e sincronizados que constituem um espetáculo de dança. A trama caótica dos vários momentos de um reality show num enlace de pequenas causas e efeitos acaba sendo editada a fim de se fabricar uma história com tendência ao dramático, ao teatral. Uma coisa genial. O perfeito “Fiat lux” da pós modernidade, organizar o caos. Por isso perdura até hoje.
Todo o drama da vida emocional, visto de coisas como amor, ódio, amizade e intrigas transformam um reality show, se bem editado, numa novelinha cuja centralidade é o jogo. A partir do jogo e dos status produzidos pelos que ganham as provas, as relações humanas se auto-coreografam, fazendo com que a opinião pública seja juiz e protagonista principal no desfecho de cada episódio, marcado pela saída de um dos participantes, até o final. Lembra Highlander: Só pode haver um.
Bem diferente da realidade na qual estamos atrelados, por sinal. Aqui, vai-se muito além de provas e regras de jogos. Aqui, podemos reclamar das agruras da vida. Num reality show, poderia apostar que não poder criticar o programa consta no contrato. Interessante como alguns ficam famosos num piscar de olhos porque foram excluídos ao burlar cláusulas. No local onde vivem os participantes a realidade encolhe-se e fica reduzida a eventos predeterminados. Eis aí a coreografia.
Entendo um reality show mais ou menos como a Caverna de Platão invertida. Nós, do lado de fora, observando os participantes dançarem junto com as sombras da fogueira. Como nas novelas, os entusiastas do reality show projetam-se nos protagonistas, transformando o reality na sua própria fantasia, esquecendo de um detalhe: o jogo.
Em oposição ao que se aventa, a vida, definitivamente, não é um jogo. Não há prêmios e nem regras. Há leis. Não há fórmulas e quanto mais se dissimula, mais se foge dela. Jogos são superações. Como surfar no arco-íris, sair-se bem sucedido e encontrar o pote de ouro no final. A vida é o virtual, mas que dói e dá prazer também. Sociedade do Espetáculo, como diria Guy Debord. A vida é o arco-íris completo, a volta toda, um começo e um fim. E o pote de ouro, para alguns conquista, outros sorte, alguns, corrupção, e outros, sonho.
Todos queremos um brother, mas não tão big assim, para um outro Brasil, melhor, mais reality do que show.

16 de fev. de 2010

Gírias, meu...só.

Bah, o pastel é o seguinte: a pinta ontonti me intimô numa parada pra lá de sinistra: deu a barbada pra cima de moi, dando um lance que tava tri no pique da galera. Tric, tric, rolimã, mas eu grilei porque era puro papo reto de bicho grilo. Os maluco da Oswaldo tudo na praia, tudo ligadão, no mínimo tavam me tirando pra otário se fazendo de joão sem braço querendo que eu descascasse o abacaxi.
Não sei, quando eu abri o jogo pras mina, elas me trovaram que a baranga tinha largado uma baita bidala, rasgando a orelha dos nerd saradão metido a sufrista jojolão, que acharam aquela djosca uma puta duma brasa mora. Claro, a jabiraca jogou no ventilador lavando roupa suja, barato que só existia na cuca dela, mas não tinha feito a cabeça das gurias, que sacaram de vez que o jaburu tava era soltando um barro pela boca. Não eras.
As mina tavam tudo de mãos atadas. Não podiam matar a cobra e mostrar o pau porque a quenga levava a gurizada no lero, com toda aquela lenga lenga. Putz, meu, as guria meteram o rabo entre as pernas e ficaram só na butuca. Acontece, brou, que tocou pra eu soltar o verbo pra parceria, certo que eu ia pagar mó mico, sabendo que em toda a pedra no sapato, eu sou mó pé-frio da paróquia. Tava afinzão memo era de picar a mula, mas a piriguete ia ter que pagar o pato.
Arresolvi quebrar o galho dos mano e das mina e deitei o cabelo pra praia. Fui lá fritar banha pra parceria daquela penca de coisa sem pé nem cabeça. Os guri tudo tavam cheio de macaquinho no sótão, trocando alhos por bugalhos, que no fim só trocava seis por meia dúzia. Pior, mano, os loco não eram assim troca tinta, não iam me seguir se eu botasse a boca no trombone. Eu até era maneiro pros loco, mas não era o bam bam bam. E aí que botei minha cachola pra funcionar. Armei uma pra tinhosa, fazendo ela mesma voltar à vaca fria e parar de rasgar seda.
Os mano brou tudo zoando, na galera, com as naves deitada na areia, lagartiando, tomando chá de cadeira. O mar tava que era só merreca e as pinta tudo marrento. Já cheguei chegando e barbarizando o ambiente. Pra conseguir atenção, disse: “Ó o auê aí, ó!” Começou o fuzuê. Galera se levantou e quase que eu amarelei bonito. Sentei o pé e encarei a parada dura. Já disse qual era e os loco tudo arretado vieram pra cima de mim com aquela história do poste mijando nos cachorros e que eu era meio estragado da lagarta. Eu larguei fincado já me adiantando no parangolé e abrindo todas. Oito ou oitenta.
Olha aí, seus cabrerão, ficam dando uma de jaca e não pegam nada. Eu tava por tudo. A kelly deu mó kaô em vocês e vocês ficaram dando pala. Aí, não eras, eles disseram, mas eu não dei o braço a torcer e dei com a língua nos dentes. Azar do goleiro. Se eu desse com os burros n’água ainda tinha bala na agulha pra dar o troco. Larguei o papo de mão beijada.
De caso pensado e com uma perna nas costas contei toda a história deixando uma benga no bagulho que fundiu a cuca lelé dos merrequeiros. Se quebraram. Dali a pouco já deu um mormaço e os sufristas já tavam no maior mosquedo querendo tapar o sol com a peneira. The cow wents to the swamp.
Só, meu. Armei o barraco pra cima da barraqueira, dei uma de dente cariado e caí da boca. O arranca rabo só terminou quando a fubanga largou o papo firme, ajeitou o air bag, abriu as pernas e entregou o ouro.
Botei banca, não queimei o filme, deixei os loco tudo bolado e mostrei que não era bicho de sete cabeças aquela batata quente. Muita pinta ficou boiando na história, viajaram legal. Fazer o que, sou fora da casinha mesmo. No final das contas, no fringir dos ovos, a mina deu piti. Maneiro. Massa. Barato estranho. Eu tava com a macaca naquele dia.
Deu um frio na barriga quando as gatas vieram pra cima de mim. Me tiraram pra herói da história. E eu nem tchuns. O grilo era básico: a maria vai com as outras esqueceu de molhar o bico e miou pra trás. Simples como assobiar e chupar manga. Em mandinga de trouxa, exu não faz banzé.
Você entendeu tudo direitinho? Captou a história e o problema? Não? Pena mesmo. Quem mandou estudar muita gramática e pouca linguística. Pra mim também, deu um trabalhão entender o que eu mesmo escrevi. Tudo é impermanente, até a língua que falamos.

15 de fev. de 2010

Seres

Notaram como, praticamente, não existem mais parâmetros de diferenciação etária? Uma adolescente de quinze anos pode muito bem passar por uma de dezoito, ao passo que uma mulher de vinte e oito pode parecer nem ter chegado aos vinte ainda.
Numa antiguidade não lá muito distante, as idades e as fases eram visivelmente diferenciadas, em particular, nas vestimentas. Não havia uma relação direta com a compleição física. Roupa caracterizava a faixa etária. Solteiras e casadas tinham suas nuances. Fitávamos os dedos da mão esquerda e direita a fim de encontrar o grau de comprometimento. Se não houvesse no anelar da esquerda uma aliança, os termos “moça” ou “senhorita” vinham à tona instantaneamente. Ser velho, por exemplo, era normal, aceitava-se isso. Exigia-se respeito ao idoso. Orgulhosos, ostentavam-se dizendo terem chegado à velhice. Hoje, o termo soa como ofensa. O mercado encontrou um termo “mais” apropriado: a melhor idade. São os tempos.
Por ser romântico e saudosista, achava lindo contemplar menininhas de cinco anos com vestidinhos, sapatinhos e laços de fita nos cabelos. Ora, pois, nessa mesma faixa etária, até emo já anda, com direito a All Star e meia arrastão. Crianças alfabetizam-se ao mesmo tempo em que aprendem a fazer um download não-oficial de uma canção da banda do momento. Criam “fakes” nos orkuts da vida e adicionam sei lá quem ou o que em seus msn. Antes de ler O Pequeno Príncipe, já viraram o Resident Evil 5. Adolescentes convivem tranquilamente com o ato corrupto de copiar e colar o texto de um site em sua íntegra e entregar o “trabalho” impresso como se fosse de autoria própria. Nem roupa nem atitude diferenciam idades.
Os seres não têm mais a identidade que tinham. Perderam-se muitos estereótipos da sociedade e, com eles, seus referenciais. O “ser” criança já dança funk; o “ser” adolescente possui bem mais acesso ao conhecimento (de qualquer tipo) do que nós, quarentões, jamais imaginaríamos ter. Sinto-me feliz com o DVD, no entanto, flerto com um aparelho de Blue-Ray lagarteando na vitrine de uma loja chique. Ando satisfeito com meu celular que também é MP3 Player, porém, claro, já desejo um touch screen bonitinho e economicamente viável que vi nas mãos de uma amiga. Ao meu idoso ver, é essa impermanência das coisas úteis que ajudou a derrocar a diferença entre as faixas etárias. Vivemos numa constante mudança. E que mudança.
Isso é benéfico? Em certo sentido, sim. Quando eu tinha doze anos, mirava um casal de quarenta atirado no sofá, assistindo, inertes, às novelas da noite. Esperavam o natal e outras festas para fazer algo diferente. Nos dias de hoje, vejo-me chegando aos 50 um verdadeiro mocetão. Coisas do aumento da expectativa de vida e da revolução técnico-científica. Pena eu não ter dinheiro pra comprar um creme que rejuvenescesse em até dez anos o meu rosto.
Crianças nascem de olhos abertos. Não nasciam. Não faltará muito para que nasçam com dentes. Arrisco até furos nas orelhas, de nascença. Algumas crianças fêmeas ganharão, de presente de um ano, um piercing no umbigo. Exagero? Assim caminha a humanidade.
Caminharei com ela, mas já vou avisando: gosto da ideia de envelhecer, por isso vou devagar, passos lentos, dor nas costas e nos rins, contemplando tudo.

11 de fev. de 2010

Doente do Pé

Não é isso. Eu gosto de samba. É um gênero musical envolvente, em qualquer dos seus estilos (até a bossa nova). O samba é a assinatura definitiva do brasileiro, em detrimento do futebol, que não é mais. Quando fui, com dezoito anos, estudar na Alemanha, eu sabia tudo de tocar James Taylor, mas os alemães queriam ouvir o que, de um brasileiro? Samba! Spielen Sie die Samba, bitte! Samba é vida, sensualidade, tristeza, melancolia, consolo, afeto.
O samba das escolas de samba é um verdadeiro heavy metal desse gênero musical. Vibração pura. Meu aparelho digestório todo vibra na mesma freqüência. Não há como ficar parado.
O problema não é a música. O que seria então?
Quando criança, e como toda da minha época, fui levado a um baile de carnaval infantil (existia isso) fantasiado de índio. Fantasia das mais fáceis. Bem, ao chegar lá, a maioria dos meninos estava fantasiado de cowboy. Foi um massacre. Um verdadeiro Little Big Horn invertido. Por causa disso sei exatamente o que Custer sentiu.
Cresci. Na adolescência passei minha primeira noite acordado fazendo festa num baile de carnaval. Fui até beijado por uma prima bêbada dez anos mais velha do que eu. Sabíamos todas as marchas (e não sambas) de cor. Ao mesmo tempo em que pulávamos (e não dançávamos), cantávamos a plenos pulmões “quanto riso, ó, quanta alegria” ... Na hora da cabeleira do Zezé, meu primeiro nome era um bom trocadilho para a ocasião.
Quando adulto fui a dois bailes de carnaval somente. Um para não pular a noite inteira (eu fazia parte da banda) e outro para levar minha filha, pequena na época. Até Padre Marcelo teve no Baile. Fantasiamos minha filha de Branca de Neve enquanto as outras meninas da idade dela estavam só de shortinho. Acho que foi reminiscência do meu passado de índio.
Desfile das escolas de samba e carnaval de rua. Meu primeiro foi em Pelotas e curiosamente era um desfile em que todos os homens desfilavam fantasiados de mulher. Acho que não está ligado à fama da cidade. Não eram gays eu acho, senão o crescimento vegetativo daquela cidade valorosa estaria comprometido. Penso que estivessem apenas fazendo política de boa vizinhança. Assistindo ao evento, em dado momento levei um banho de farinho no rosto. Sábias palavras me vieram à mente naquele momento: “se te baterem na esquerda, mostra-lhes também a direita”. Mostrei minha direita bem no meio da cara do folião. O resto, vocês imaginam como foi. Segunda vez foi no Rio de Janeiro. Vermelho, queimado de praia, um pimentão, abordado em plena Sapucaí por um vendedor de cerveja que me diz: “Cool beer...ten dollars”. Aquilo foi que como uma iluminação para mim. Percebi que não pertencia àquele lugar. Nunca mais fui.
Nada disso me fez não ter interesse pelo carnaval. Possivelmente, tenha sido meu estudo de Antropologia, com aquela história de rituais de acasalamento na sociedade humana, coisa do Lévi-Strauss. E o que tem de sagitariano nesse Brasil, não é bolinho. Quase ninguém vai para o carnaval querendo procriar, mas acasalar... Bem...
O carnaval não é o ópio do povo. Quando muito, é a fluoxetina do povo, para estados depressivos leves. Por isso, talvez, a quarta-feira de cinzas. Onde Momo devolve as chaves da cidade ao prefeito e a fantasia da realidade substitui a de pirata, ou colombina. Carnaval é bom. Sem ele a mídia teria que esperar até a Páscoa para ganhar mais com comerciais.
Não é a festa. Meu problema é que não sei dançar. Tentei várias vezes, sem sucesso, aprender a dançar samba. Sei tango, mas não tocam tango em carnavais. Ao menos aqui, não.
Certa feita, nos anos noventa, o Príncipe Charles, o orelhudo, esteve no Brasil na época do carnaval e, sob as câmeras e holofotes de repórteres, ensaiou alguns passos com uma porta-estandarte. Horrível, mas me identifiquei com aquilo. Sou igual a ele. Uni isso ao episódio da cerveja e concluí que não sou brasileiro de coração. Sou um simulacro disso. A dança foi o vetor que me desterritorializou da festa da carne.
O que faço no carnaval? Santa internet. Santos canais de tevê que se lembram que existe quem não participe dessa festa. Cinemas vazios. Porto Alegre vazia. E amo a quarta-feira de cinzas. Todos tristes, eu... na mesma.
“Quem não gosta de samba, bom sujeito não é. É ruim da cabeça, ou doente do pé”. Que injustiça. Amo o samba. Sou doente do pé.

Eu-tu; Eu-isso

Buber foi um filósofo judeu que morreu no meio do século XX. Ele possui uma formulação teórica a respeito das relações humanas que gosto muito. Faz uma classificação das relações entre o eu-tu e o eu-isso. Peço licença para uma releitura, tendo em foco, rótulos e estereótipos.
A tendência de coisificar pessoas é velha, porém veio a se tornar uma força dominante na atualidade. Não há como coisificar uma pessoa sem que haja uma rotulação padronizante, como se coubessem dentro de “caixinhas”. Nessa condição, o tu transformar-se-á em isso.
O que é o “tu”? Com certeza não é um “isso”. O tu é alguém que sente, que se aproxima ou se afasta conforme a situação. Sente dor, alegria, ódio, reflete, pensa. Em suma, aproxima-se do EU por ter a mesma natureza. Com o tu interagimos, relacionamo-nos e damos sentido à essa relação.
O que é o “isso”? Contrário do tu? Não.
Aquilo que padroniza, que tira a alma da pessoa, faz um pré-juízo, dando-lhe uma forma normativa que determina toda e qualquer atitude. O isso está em voga, é flexível, dinâmico, sempre disponível a um interesse específico de algum outro tu. Simples, quando o tu não quer um outro tu chateando, torna-se rapidamente um isso. E dos grandões.
Alberto (tu), meu amigo (eu), sorridente (tu), aproxima-se a mim já contando piadas sobre judeus (isso). Pura coisa de adolescente (isso). Tenho (eu) ascendência judaica e rio muito disso. Por outro lado, Alberto tem ascendência alemã (isso). Óbvio que sua chacota teria um quezinho de anti-semitismo (isso). Alguns minutos de conversa e lá estava Alberto lamentando-se sobre o fato de não possuir dinheiro suficiente para fazer determinadas coisas. Dizia-se pobre (isso). Reclama pelo fato que ganho bem e posso ter acesso a coisas que ele não pode, chamando-me de rico (isso) Respondo (eu), emocionado, que foi à custa de muito estudo e suor do rosto, o que fez de mim um professor (isso) de renome. Disse-lhe também que o fato de ainda não ter concluído o ensino médio (isso), impossibilitou-lhe de alçar voos mais altos.
E por aí foi nosso diálogo. Enchemo-nos de “issos” a fim de detectar diferenças que nos colocassem em planos mais altos ou mais baixos. Vantagens, desvantagens, justiças, injustiças... pré-juízos. E um prejuízo enorme na relação eu-tu. Desgaste.
Máscaras sociais, papéis na sociedade, insegurança e desconfiança nos remetem a relações eu-isso. Quanto maior a quantidade de issos que se nos apresentam, maior o distanciamento. Em plena era da informação e da comunicação. Com certeza alguém rirá disso no futuro.
Cláudio casara com Kátia. Desde o início a relação foi um eu-tu. Transparente. Igualdade de condições. Decisões tomadas juntas. Irradiavam alegria por onde passavam. Algumas pessoas até começaram a acreditar que o casamento era uma coisa boa, por causa deles. Passou o tempo e a força dos issos começou, lenta e inexoravelmente, a se manifestar. Kátia fora promovida e ganhava mais do que o dobro que Cláudio. Já não se sentia mais à vontade de incidir nas decisões do casal. Kátia achava que já era hora de terem um filho. Tinham, no entanto, decidido não ter filhos e cuidar da carreira. Mais um isso: família. Ela sagrou-se doutora, ele contente com o nível superior. Viagens a trabalho, palestras, adiavam constantemente seus planos de conhecerem o mundo. Afinal, ninguém mais sabia de mecânica quântica no país quanto ela. Um “isso” de alto significado. A empresa de consultoria de Cláudio ia bem, até. Estava contente e conformado com seu “isso”. Hoje, ele busca seu filho todos os fins de semana na casa de Kátia.
Não há como se livrar do eu-isso na transitoriedade da vida. Talvez haja sim uma maneira de estimularmos relações eu-tu, procurando o tu no eu e identificando o eu no tu dos outros. Sem recorrer aos issos, claro.

10 de fev. de 2010

Catástrofes

Pode até haver um propósito para a vida, não discuto isso. Para a morte, no entanto, não há. Simplesmente se morre. E ponto. Quando a morte é compartilhada entre muitas vidas, sem aviso prévio, de sopetão, temos uma catástrofe.
Sempre acontecem, não importa onde e quando. A catástrofe não escolhe bons e maus, cristãos ou muçulmanos, colorados ou gremistas, petistas ou psdebistas. Não escolhe ninguém, pois não tem vontade. Os que morrem e os que se salvam fazem parte do campo das probabilidades. Estaria eu sendo frio e calculista? Não. Apenas vejo a saúde sob o ponto de vista da doença.
Catástrofes, normalmente, vêm de causas naturais podendo atingir um grande número de pessoas. Se um terremoto acontecer num deserto ninguém lamentará a morte de cactos e répteis. A centralidade é o ser humano. Qualquer estudioso desses fenômenos dirá que são as placas tectônicas, em suas variadas nuances de movimento. E para o público leigo, a escala Richter não diz muito, embora cada índice aconteça numa relação algorítmica. Deveria haver uma nova forma de demonstrar a magnitude de um terremoto, principalmente numa sociedade consumista onde o R$ 3,99 “tem” uma enorme diferença para o R$ 4,00.
Há precaução para esse tipo de coisa? Dizem alguns que observando os animais. Conseguem pressentir uma catástrofe muito antes que ela se manifeste. Ouvi dizer que nenhum animal selvagem morreu no tsunami que atingiu vários países em 2005. Se for assim, posso ficar tranqüilo. Simba, meu gato de estimação dorme sob os meus pés enquanto escrevo esta crônica.
O que se faz depois da catástrofe, caso sejamos, você e eu sobreviventes? Estocar alimentos parece ser uma boa pedida. Água também, contanto que a casa onde moramos não seja atingida. Acredito que nessas horas, surjam, do nada, muitos heróis que ficarão para sempre no anonimato. De qualquer modo, tentar manter a calma e procurar ajudar os que necessitam até que o socorro especializado apareça, parece ser a melhor coisa a se fazer. De resto, o momento ditará a melhor atitude.
Por que as catástrofes que acontecem longe da gente ganham mais popularidade do que aqueles que acontecem próximos a nós? Porque matam mais gente? Porque atingem países mais pobres do que o nosso? Ou existe um sentimento de redenção inconsciente por não termos sido diretamente atingidos? Ou não achamos as nossas catástrofes tão grandes assim? Choram pais e esposas que perderam filhos e maridos na missão de paz do Haiti. Choram os fãs da Dra. Arns, a heroína que ficará para a posteridade (ela não era anônima, como muitos heróis). No entanto, choram igualmente as vítimas das chuvas que assolam o país desde o segundo semestre do ano passado. Sofreram e sofrem com a falta de alimentos e o atraso no envio de recursos para dirimir a situação.
As catástrofes têm sido um show à parte, na mídia. Principalmente a nossa época que não convivemos com a morte ao nosso lado, em comparação com períodos do passado. Morre-se em hospitais. Fico pensando numa catástrofe que durou anos a fio como a peste negra. Os corpos, em muitas vilas, jaziam no meio da rua, aumentando a incidência da peste bubônica e outras doenças. Só era enterrado aquele corpo cuja família pudesse custear o enterro. Convivia-se com a morte, no cotidiano. A mortalidade infantil era intensa. Infecções, guerras. Morria-se muito e a olhos vistos. O medievo via a morte de uma perspectiva bem diferente da atual, independente de visão religiosa. De tão fantástico que a mídia transformou as catástrofes, elas ficaram parecendo coisas virtuais, ficção científica, menos, é óbvio, para quem sofre o problema.
A esses que sofreram na carne, meu respeito e consideração. Aos heróis incógnitos, minha homenagem sincera. E a questão: até quando os governos não estarão preparados para catástrofes naturais? Simba até já está começando a se agitar nos meus pés aqui.

7 de fev. de 2010

Tudo é importante; nada é sério

Mundo transitório, insubstancial. Nas ideias e nos produtos. A adolescência da minha geração viu essas mudanças. Algumas coisas acompanhamos, outras corremos atrás. Um adolescente de hoje dificilmente conseguiria imaginar um mundo atual sem internet e controle remoto, por exemplo. No mínimo, acharia a vida um tédio. Particularmente, nunca pensei que existiria algo além do disco de vinil. A transitoriedade da vida utilitária transformou-nos em seres usuários e não mais pensantes.
Tudo é rápido. A linguagem está encolhendo. Uma palavra pode hoje traduzir um rizoma de sensações, um simples “hum, vixi ou eita”. A comunicação, na maioria das vezes, passou do diálogo e da reflexão para “torpedo” e manuais de instrução das coisas que adquirimos. Acredito que a casta mantenedora de uma certa lógica de sentido sejam os motoristas de táxi. Na tentativa de diminuir o tédio que é o percurso, transcendem à velha fórmula do papo sobre o tempo, divertindo-nos sobre os mais variados assuntos, desde teoria da conspiração, efeito borboleta e o clichê de falar mal do PT e dos fiscais de trânsito, vulgo azuizinhos.
Nesse mundo em desencanto a rapidez com que as coisas vêm e vão parece ter-lhes tirado a essência, esta no sentido de digerirmos o que acontece à nossa volta. Se não digerimos não damos a devida importância, ou mesmo, nenhuma. Um relacionamento fulminante de alguns meses pode ter a intensidade de uma vida inteira.
Ao passo que a realidade vai mudando constantemente, criamos uma visão neurótica de não conseguir acompanhar o que está a nossa volta. Com freqüência nos encontramos diante de situações das quais não conseguimos discernir o que é mais importante. Às vezes tudo parece importante, às vezes, nada. O trabalho ou mais tempo com a família. Estudar para crescer profissionalmente ou aproveitar mais os momentos de folga. Correr atrás dos sonhos ou “sossegar o pito” , como diziam os antepassados. Até mesmo o prazer momentâneo, hedonista, tem sido combatido ferozmente pela mídia atual. Será uma busca retrógrada pelo significado das coisas? Será que estariam implorando para que parássemos um pouco e víssemos a vida passar? PPS pra isso é o que não falta.
A tradição judaico-cristã oferecia-nos de bandeja, princípios e regras que diziam-nos o que era importante e o que podia ser desprezado. O final do século XIX duvidou dessa normatização, vindo a imperar o relativismo, tanto que virou mote a frase “a sua verdade não é a minha”. Lá se foi o plano hierárquico das importâncias. De um século para outro tudo tinha a mesma força ou nada tinha força.
A transitoriedade dá sentido ao conceito de impermanência. Pessoas mudam ideias e crenças com muita facilidade, ou as assimilam dentro de seus próprios territórios de pensamentos. Entretanto muito do que fazemos está atrelado ao que pensamos ser certo fazer. Mas como esse pensamento muda rapidamente, mudam também as atitudes e com isso não sabemos mais quem somos, ou quem pensamos ser.
Outro fator preocupante é nossa visão do tempo. Como ocupá-lo. As alternativas são muitas, as atividades diárias aumentaram e o tempo parece ter encolhido. Proponho uma reforma no movimento da Terra: um dia de 48 horas (com as mesmas oito horas de sono) e um ano de 730 dias. Nossa pineal teria que se adaptar, mas tudo bem. Aliás, o tempo acabaria por passar rápido também, pois acharíamos mais coisas pra fazer.
Foi pensando em toda essa problemática que criei uma solução simples. Julgar tudo importante, não desdenhar de nada, mas não levar nada a sério totalmente. Como os gregos, primo pela moderação. Num extremo do cabo de força está o mundo atual, pró-ativo, das decisões rápidas e das iniciativas que levam ao “sucesso”. Do outro lado, o não-agir, a contemplação, a inatividade dentro da atividade. Bem, eu ajo, faço o que posso, mas não dou bola pra isso. Afinal, é importante, mas não é lá tão sério assim.
Numa de suas geniais crônicas, Luís Fernando Veríssimo disse que só usava calça bolso faca, sabendo que a moda um dia, o alcançaria. É disso que falo. No eterno retorno diferente, de longe, desterritorializado, tudo parece parado e da mesma cor, como no efeito doppler.

6 de fev. de 2010

NETOS ESPERTOS, AVÔS APRENDIZES

Vô, por que o senhor passou o sinal vermelho? Perguntou o neto de oito anos ao ancião septuagenário. O sinal estava amarelo, retrucou o bom velhinho. Vô, o fiscal de trânsito que foi à escola na semana passada disse-nos que um carro só poderia atravessar o sinal amarelo se já estivesse na faixa de retenção. Faixa de retenção? O que é isso, menino? Uma faixa branca no meio da pista, paralela ao cordão da calçada, perto do semáforo. O avô calou-se, resignado. Quando ele tinha oito anos, nem sabia o que significava paralelo, que dirá retenção. Mas não deixou por menos, tentou dar a volta por cima contando-lhe a história de como aprendera a dirigir.
Sabia André, que seu bisavô foi um grande motorista de caminhão? Ele foi o primeiro a dirigir um Fenemê, no Brasil inteiro. O menino não deu importância, pois não sabia o que era um fenemê. Desde pequeninho, continuou o avô, eu me sentava no colo dele pegava a direção e... Vô, é proibido criança viajar no banco da frente, por isso estou aqui atrás. Novamente a resignação. André, naquela época auto-escola era pra gente rica, eu aprendi a dirigir com meu pai, seu bisavô. Com dezesseis anos eu já saía à noite, e... Vô, só se pode dirigir a partir dos dezoito anos e ainda com carteira de motorista. O avô não ganhava uma. Quem te ensinou isso, guri? A escola, ora. É lá que a gente aprende cidadania. Mais um termo desconhecido. Também não aprendera leis de trânsito na escola.
A gurizada de hoje é muito diferente da nossa, meu filho. Vocês só sabem ficar naquela coisa, o computador. Nós é que nos divertíamos de verdade. Eu, por exemplo, era fera no bodoque (bodoque?). Não havia um passarinho que se salvasse e... Vô! Caça deliberada, sem licença é crime e o senhor não precisa caçar pra comer. Tem carne pra vender no supermercado. A nossa professora, quando dá aulas de ciência, vive nos dizendo para preservar o meio ambiente e que várias espécies estão ameaçadas de extinção. Estava difícil aquele diálogo. O menino rebatia todas. Mas o avô, nascido no ano da segunda guerra mundial não era de desistir com facilidade. Sabe André, eu não tinha a metade das coisas que vocês têm hoje. Videogames. Eu tinha um carrinho de bombeiro feito de lata de azeite (azeites vinham em lata?). E adorava jogar bola no meio da rua até o anoitecer... Vô! Jogar bola no meio da rua é perigoso, além de proibido. Moramos no centro da cidade, podemos ser assaltados ou até raptados, e bola nós jogamos na Educação Física, na Escola. O avô, quando tinha aulas de Educação Física, só fazia exercícios. Seu professor era tenente do exército, reformado. A única coisa que salvava suas aulas era que as meninas usavam shorts. Era o máximo.
Guri, tu achas que aprende algo na Escola? Hoje em dia não se aprende nada. Eu decorei o Hino Nacional todo, e vocês não sabem nem a metade... Vô, de que adianta decorar o “gigante pela própria natureza” se vivemos “deitado em berço esplêndido”? Decorar hinos não muda nada. Até pode, meu neto, mas quero ver se tu sabes alguma data cívica de cor, pois eu sei todas. Repetíamos várias vezes para fixarmos o que aprendemos... Vô, a professora disse que decorar sem refletir não serve pra nada. E outra, data cívica no Brasil só é importante quando é sinônimo de feriado. Mas então, André, o que vocês aprendem na aula de história? Ah, vô, o que realmente precisamos saber: que perdemos a Guerra dos Farrapos, que o Império Brasileiro era escravista, que Vargas era um ditador... Opa! Vargas não era ditador coisa nenhuma! Sem ele não existiria o Fundo de Garantia e Carteira de Trabalho. Eu era piá, mas me lembro muito bem do que o meu pai me falava. Vô, a professora disse que Vargas era um populista. E era mesmo, isso o velho também ouvia desde guri. O negócio era apelar pra matemática. E a tabuada? Vocês hoje não decoram nem a tabuada. Ah, vô, mas isso é coisa ultrapassada. A professora nos ensinou multiplicação com tampinhas de garrafa pet e aprendemos também no ábaco. Tabaco? Não vô, áaabaco, a primeira calculadora que existiu... Notou, apesar de todos os esforços, que não seria na educação que o avô ganharia do netinho.
Certo tempo de silêncio se passou até que o avô irrompeu num grito que assustou o menino. Ler! A juventude de hoje não lê mais. Na tua idade eu já tinha lido Moby Dick... Eu vi o filme, vô. Chato, por sinal. André, eu li a Odisséia aos dez anos... Também vi o filme, vô, e a professora nos contou a história na sala de aula. Ler a gente lê, mas é melhor pegar o resumo na internet...
Aquela geração estava perdida, tudo era plástico, incipiente, nada vinha pra ficar. Não se memorizava nada, não se lia nada importante, não se decorava a tabuada. Um caos. A moral estava degenerada graças ao ensino moderno. Aquele devaneio todo foi cortado pelo grito do neto: Vô, o senhor passou o sinal vermelho de novo! É, aquela geração estava perdida mesmo...

Filho da Crise

O que seria da personalidade de uma pessoa se ela ouvisse “não posso, não tenho dinheiro” durante toda a infância, onde o cognitivo e o emocional ainda se confundem na busca do por quê? Esse vetor de potência, intenso, repetido inúmeras vezes proporcionará força de vontade, vontade de crescer, ou produziria um rol de atitudes ambiciosas, de conseguir o que se quer a qualquer custo? Ou até mesmo produzir um estado perene de depressivo derrotismo e a auto estima abaixo do pé da cobra (ou de-cabra)?
Sou um filho da crise. Não me lembro ter ouvido na história desse país um “somos desenvolvidos” ou “nossa economia é tão estável quanto qualquer país rico”. O que ouvi sempre foi um “estamos melhorando” ou “somos o futuro”. Na hora cívica então, o discurso era sempre o mesmo: “as crianças são o futuro da nação”. Não sou mais criança. Sou adulto. Ainda se esbraveja essa frase em discursos e propagandas de tevê. Penso que deve ter a mesma significância do “fiado, só amanhã”.
Quando nasci, havia seis meses os militares tomaram o poder. Crise política. Confusão. Um Ato Institucional atrás do outro ao longo dos anos de minha tenra infância. Economia “estável”, milagre brasileiro. Salários baixos, mas preços congelados. Medo. Repressão. AI-5. Perseguição. Um professor meu de história, já no comecinho do ano letivo, desapareceu. Conversas ao pé do ouvido. Desconfianças. Entrei na faculdade de história e um colega nosso tinha a fama de pertencer ao CNI . Cuidávamos o que dizíamos e como dizíamos.
Fim dos setenta, inicio-me no mundo do trabalho. O salário mínimo altamente defasado, perda do poder aquisitivo. Um vinil apenas por mês. Um cinema, um tênis Bamba. A calça Levi’s era um sonho distante. Pais ecoando um “estuda para ser alguém”. Não fiz medicina nem direito. Não sou alguém. Sou algum.
No meio dos oitenta, abertura política, Fafá cantando o hino daquele jeito, eleições. Plano Cruzado, já ganhava mais e melhor, mas o dinheiro não tinha valor. Quando os preços congelaram, eu paguei ágio. Passei a trabalhar mais, ganhar mais, mas o preços subiam. A vida era cara. Casa própria era possível se eu acampasse ou invadisse um apartamento da COHAB. Continuei no “não posso, não tenho dinheiro”. Agora, era eu que não tinha.
Anos noventa. Plano Collor. Confisco do parco dinheirinho da poupança. Não me devolveram até hoje, isso sem falar nos depósitos compulsórios da gasolina. À crise econômica, juntou-se a crise política. Junto com o já consolidado “não posso”, adicionou-se o “será que poderei?” Corrupção, PC Farias, Anões, Zélia, Pedro, Impeachment, renúncia e mais um vice no poder executivo.
Meio dos noventa. Um presidente, dois mandatos. Plano real, a deflação roubou 27% do meu poder aquisitivo, que já não era lá essas coisas. O dinheiro voltou a ter valor, mas o neoliberalismo não podia taxar os preços. Os produtos e os meus sonhos continuavam caros. Para compensar liberaram crédito. Faca de dois gumes. Comprava-se, mas atolávamos, nós, classe média baixa, em cartões de crédito e cheques nada especiais.
Novo milênio. Esquerda no poder. Uma esquerda não tão canhota assim, já que imitava todos os movimentos da direita, confundindo-se. Bem, a inflação era mínima, mas o emprego também. O número de graduados aumentou nas metrópoles, a maioria no setor terciário, atulhando a concorrência. Crise política? Não. Econômica? Não. Crise psíquico-funcional mesmo. Salários baixos, mal reajustados, crise do medo. Medo de perder o emprego. E o emprego das mais variadas estratégias de manutenção do mercado de trabalho.
Hoje. Aumento do emprego, aumento da produção, corrupção, violência, copa do mundo e olimpíada comemorados como se fossem acontecer hoje. Pré-sal. A crise mundial (mais uma) entra no cenário nacional, faz diminuir o consumo, preços continuam altos, impostos mais ainda, mas linha de crédito aos borbotões, como salvamento. Talvez se descubra de um poço de “pré-salarização”, baseado em novas idéias, ou velhas mesmo, desde que postas em prática. Isso tudo porque não iria gostar de ver no meu epitáfio: “aqui jaz um filho da crise”.
Dizem que crise não existe. Dizem que nas crises nascem grandes idéias. Escrevo crônicas. Terá sido essa minha “grande ideia”? Ou uma estratégia pré-sal para sair da crise com a qual nasci e me acostumei?

O Virtual

Já observaram como o mundo virtual, de tanto que reproduz o real, tornou-se tanto o quanto?
Pode-se namorar com o outro lado do mundo, com o quesito do domínio do inglês, pelo menos. Bem, para isso já existem tradutores on line também. Mas é bom não arriscar muito. Apaixona-se facilmente pela palavra digitada, descobrem-se personalidades pela lógica textual, abrem-se expectativas por imagens, poesias postadas e palavras de carinho com imagens de flores e borboletas glitter.
A tela, por sua vez, a tudo aceita, e a mente, mais um pouco. Nunca soubemos tanto sobre o outro como agora. Mesmo que esse saber seja um aglomerado de vetores virtuais. A expectativa cria uma ilusão que se passa via texto, recebido por outra expectativa criada por outra ilusão mental, espalhando o virtual expectorado por toda rede mundial.
No virtual não há gosto, não há cheiro, não há imperfeições sensíveis pelos outros sentidos. Numa tela com resolução de 1024X768 as imperfeições são deixadas de lado. Vai ver é por isso que ninguém me acha gordo nas fotos. O virtual e sua expectativa seduzem, pois alimentam mais e mais expectativas. Na imagem ideal do homem charmoso uma voz fanha ou aguda demais não faz parte do pacote.
Num chat, ninguém é insincero, no que tange à opinião. Pode-se dizer o que bem se entende, o que se pense, o que se sinta, sem a ameaça de um olhar de viés ou um punho fechado no nariz. Omitem-se informações, mente-se a idade. Os internautas experientes já tem plena consciência disso e nem dão atenção. No entanto, a opinião é sempre levada a sério, seja refutada ou reforçada, ou até mesmo, ignorada.
O internauta de carteirinha tem uma relação consigo mesmo sempre de bem. Confia desconfiando. As fotos nos sites de relacionamento mostram frequentemente rostos em festa e felicidade plena, palavras de afeto. Cuida-se mais do display da página do que da própria imagem. Ninguém é mau, todos são bons e cercados de amigos. Os scraps de “te amo” são redondamente maiores do que os de “te odeio”.
Agostinho, teólogo católico teorizou sobre o dualismo maniqueísta, criando a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens. Pois é, na Cidade de Deus tudo é felicidade, bondade e perfeição. Na dos homens, bah...
O virtual criou sua própria Cidade de Deus, sem afetar diretamente a dos homens. Tudo são rosas, mesmo quando a palavra “luto” aparece. E eu que pensava que as pessoas não ficavam mais de luto.
Rosa conheceu Cássio num chat. Moço educado, digitava bem, era convicto no que dizia e, segundo ela, muito inteligente. Ele, já no msn com ela, apaixonou-se pelo sorriso da foto. Ao telefone, meses mais tarde, a voz dele era grave, mas terna. A voz dela era suave e lembrava a voz de uma aeromoça falando ao microfone. Após oito meses de contato diário, virtual, resolveram se encontrar e passar uma semana juntos. Viajaram. Encontraram-se. Ele e ela eram realmente como nas fotos. Talvez ele não tenha notado que as pernas eram um pouco grossas demais e ele um pouco mais baixo do que parecia ser na foto. Detalhes. No hotel, a terrível verdade: ao se beijarem, Rosa sentiu o hálito horrível de Cássio. Beijar, a partir dali tornou-se um suplício. No dia que passaram juntos, a outra verdade: ela não parava de falar, falava pelos cotovelos, e Cássio, por sua vez, amava o silêncio. Não deu certo. Voltaram do encontro frustrados. No entanto, casaram-se. Falam-se todos os dias, dão-se muito bem e veem-se pela webcam, trocando eternas juras de amor. Há dois anos eles criaram sua própria Cidade de Deus. A dos homens, como sempre, era insuportável.

O Amor e o Transitório

Bem disse Schopenhauer: o amor não é sinônimo de felicidade. E, na era do hedonismo, sofrer por amor pode ser, por incrível que pareça, uma forma muito boa de obter prazer. Conforto, lazer, sensualidade, tudo passa, e o comércio a isso nos impele a seguir adiante, sempre. Já o amor, desejamos, intimamente, que não seja transitório, ainda que o aceitemos assim.
Aviso aos navegantes: o amor há muito não é mais romântico, embora alguma pessoas insistam que seja. Hoje, dar flores sem um “eu te amo” significativo e sincero não ta com nada. A mulher, a exemplo dos conselhos das matronas de antigamente, achar um homem trabalhador e que a sustente, é, no mínimo, ofensivo. Trabalhador e honesto está pra lá de bom. O amor romântico, do “gentleman”, era um amor do sexo frágil. Sabemos, na pós modernidade que frágeis somos todos, em alguns casos. E o poder é delas. Abrir a porta do carro, por exemplo, não é mais importante do que não desligar o celular, atendendo sempre que for chamado. E quanto ao celular, as gentilezas estão dos dois lados.
Dois lados. O amor pós moderno transcendeu vários bloqueios, chamados preconceitos. Ele não tem mais sexo, cor, religião e nem diferenças entre times de futebol. Ele é simplesmente amor, sem regras quanto ao seu objeto.
Desconstruído o amor romântico, o que ficaria em seu lugar? O amor biológico, aquele cujo objetivo central é a preservação da espécie. Duvido. Nunca foi tão fácil amar, e ao mesmo tempo, tão difícil de conceituar. Mesmo que seja inconsciente, como disseram Schopenhauer e a psicanálise, ninguém vai para uma festa procurar pais para filhos saudáveis. Não é esse o grande motivo que leva alguém a querer amar e ser amado. Ah, e não esqueçamos: se for sofrido, como numa novela, melhor é.
A história do casamento não deu ao amor a posição de trono real. Questões, políticas, poder, comércio e conveniências estavam acima do estado motivacional que é a paixão. E mesmo atualmente, com todas as facilidades de encontros, a paixão ainda é mais virtual do que real. Idealiza-se muito, criam-se muitas expectativas que na maioria das vezes, são ilusórias. O amor romântico pertencia ao território do universo livresco dos contos de fada. Não é a toa que conhecemos hoje a “Síndrome de Cinderela”.
O amor é, ao mesmo tempo, a coisa mais social e individual que existe. A proteção, por exemplo, caiu fora da lista. Em seu lugar entrou a soma. Na soma, os fatores são um acúmulo, não uma fusão. Com a soma, respeita-se a individualidade e administram-se melhor os problemas. Veja-se bem: problemas, não diferenças. Mesmo porque não é da matemática somarem-se as diferenças.
Em tempos passados, porém não remotos, o companheirismo era o resultado de uma vida inteira juntos, onde o amor inicial transformava-se numa grande amizade, tornando o viver sufocante se uma das partes morresse primeiro. Hoje, no entanto, o companheirismo é pré-requisito para quem quiser transcender o ficar.
Depois de mil definições, ao amor atual resumiu-se ao que ele realmente possa ser, em essência: afeto e cuidado. Não muito diferente do que seja o amor de um pai por seu filho. Afeiçôo-me e me aproximo; aproximo, proporciono afeto e o recebo de volta. Para que isso se mantenha, cuido. Cuidando, sou cuidado. Reciprocidade, por muito tempo, se possível.
Schopenhauer também disse que o casamento só serve para duas pessoas fazerem de tudo para se odiarem. Teve um amor e um filho com esse amor, mas não casou. Vanguarda de sua época, hoje, normal. Amor não é sinal de matrimônio, obrigatoriamente, mas uma identificação que pode nos fazer olhar para o mesmo lado, sem medo de se encarar.
Um aviso final. Ame, não conceitue. Se entregue, sem medo. Mas não procure a felicidade no amor. Encontre a tranqüilidade em você mesmo, antes. Só um conselho, não auto ajuda. Parerga e Paralipomena, livro de Schopenhauer, não é propriamente um livro de auto-ajuda.

Meus eus. Só meus.

Decidido. Não sou mais eu. Nunca fui em última instância. Desde o final da minha adolescência. A sociedade me impele a descobrir quem sou. O “conhece-te a ti mesmo” não é mais uma orientação: tornou-se uma imposição. Uma frase colocada na entrada do Oráculo de Delfos. Um paradoxo. As pessoas iam lá consultar os deuses sobre o futuro, não para saberem quem eram. Talvez nem se importassem com isso e a frase ficasse no vazio.
Em detrimento a milhões gastos numa poltrona para se achar o self, resolvi acabar de vez com a opressão do eu. Demiti meu ego. O tri partidarismo dialético ego, id e superego desintegrou-se no mesmo instante em que mandei meu eu embora. E lá fora, ele abraçadão no meu alter ego para uma noite regada a vinho tinto, rock and roll e mulheres fáceis, plenas de seus próprios eus, a procura deles nos outros.
É, já sei. Meu eu se foi, e alguém perguntará o que (ou quem) vai ficar no lugar, já que o senso comum só pensa em identidade. É proibido a alma ficar vazia. Ninguém permitirá que um ser humano fique sem um eu, já que neuroticamente todos buscam pelos seus (mal sabem que todos estão lá, junto com meu eu demitido, tomando todas). Ficar sem identidade é um sacrilégio que a inquisição mente-global condena ao ostracismo e à solitária. Uma vaca é só uma vaca, não possui identidade. Se possuísse, provavelmente seríamos todos vegetarianos. Resolvi adotar o pós modernismo e aderir aos “eus larvais”
Eus larvais. Explicam tudo. Justificam tudo. Não sou eu, mas somos eus, dentro de um organismo. É como se meu rim se rebelasse contra meu cérebro e começasse a dar pitaco em seu próprio funcionamento. Fim do singular. Meu eu profissional interage diretamente com meu estressado no trânsito caótico da capital gaúcha, e por aí vai.
Exemplo de como os eus larvais são benéficos. A esposa pergunta:— foi você quem fez aquilo? O marido, tranquilamente, responde: esse eu, que esta aqui agora, não. Perguntarei aos outros eus. O eu que discute a relação foi tomar uma cerveja gelada e não me disse quando volta. Nem se volta.
Resolvido o grande problema do mundo atual. Achar-se no meio a bilhões. Como naquele livro em que temos que encontrar a personagem principal, então é melhor nem começar a procurar. Quando criança, meus eus inocentes não tinham malícia, não haviam comido o fruto do conhecimento do bem e do mal, então eram tranqüilos entre si. Hoje, meus eus maliciosos, temem que meus eus pueris queiram vir à tona e comandar o festerê.
Meus eus larvais, habitantes do meu corpo, evoluem constantemente. Meu eu pré-histórico precisa constantemente ser disciplinado pelo eu intelectual para que não acabe sendo preso numa fila de supermercado. Realmente, não é fácil, embora seja prático. Meus eus não têm um sistema hierárquico, a política é totalmente anarquista, não há líderes e sim uma democracia direta, a única que realmente existe na prática.
Quando você nos encontrar na rua, por favor, não pergunte: — como vai? E, sim: — como vão? Até para uma melhor explanação, pergunte qual dos meus eus está mais ativo no momento. Você poderá ter uma surpresa.