8 de dez. de 2011

Por Quem os Sinos se Dobraram

A história é cruel com o desuso. Ela é avassaladora com os recursos que outrora eram significativos à sociedade. A lei do uso e desuso em vigor. O que não é hábito, o que não é mais significativo para o meio social, torna-se supérfluo. Ah! E incomoda, atrapalha. Afinal, o ser humano tem de progredir linearmente, não pode retroceder. Exemplos? A caligrafia. Ganhava-se prêmios pela melhor. Alunos exemplares eram detentores das formas perfeitas, com letras esguias e imponentes. Arremedo de conteúdo e estética. Hoje, garranchos inteligíveis são tolerados por serem inteligíveis e não causar desconforto entre pais permissivos e professores estressados. Pra quê? Net, notes e PC's têm teclados e não canetas. Uso e desuso. Caligrafia (kalós = belo; grafós = escrita)é supérflua. Incomoda.
Até o visionário rico Santos Dumont usar o primeiro protótipo do relógio de pulso, sendo ele e Cartier, seu amigo, os prováveis inventores, relógios eram caros e usados pela aristocracia. As horas então eram medidas por outros meios. Meu tio de Venâncio Aires, olhava o sol e não errava. É, talvez os minutos. Mas a hora ele sabia. Quando não tinha sol? Não sei, não me lembro de tê-lo visitado quando chovia. Sinos de igreja eram um dos recursos. A comunidade mantinha-se informada da passagem das horas ou de algum evento importante pelo bater do sino. Ouvia-se a quilômetros. Não incomodava, nem se calculavam decibéis para saber se era poluente ou não. Estava lá, no alto das igrejas, imponente. Uma cena significativa do filme 2012 e que passou despercebido por quem não tinha conhecimento de causa, foi a do monge budista tocar tranquilamente o sino enquanto uma onda gigantesca o assolava. No Oriente, os sinos eram os arautos de invasões, tragédias ou qualquer outra coisa que pudesse ser antecipada. O sineiro no Japão da dinastia Tokugawa era importante. Não importa o que acontecesse. Ele tinha que tocar o sino. Sinos são, até hoje, o prenúncio do Natal. Mesmo que não vivamos em meio à neve.
O sino caiu em desuso. As igrejas badalam seus sinos para avisar o começo do serviço de adoração. Domingo pela manhã normalmente. E isto deve incomodar. Foi o que aconteceu com o Serginho, numa cidade litorânea próxima. Sua casa ficava ao lado de uma igrejinha protestante, antiga mas bonitinha, construída com a chegada de imigrantes alemães, há muito tempo, onde o sino era importante.
Serginho é um adolescente, como diríamos, "prafrentex". Dinâmico, pro-ativo, produtor, re-produtor, bombástico, bombado, surfista bronzeado 365 dias por ano, estudante de direito na faculdade particular da metrópole mais próxima. Aos sábados, a prancha e o neoprene são suas ferramentas de trabalho: surfa até umas 17h. Seus amigos o admiram. As moçoilas casamenteiras, doidas de amor não-interesseiro, o admiram. Serginho, o queridão. Fica no bar com os amigos à beira-mar, curtindo a vista, tomando sua cervejinha moderadamente e ouvindo sertanejo universitário, com o som vindo de sua caranga envenenada com 150W RMS e duas caixas médio-grave. Aliás, Serginho é altruísta. Não só ele, mas toda a praia pode desfrutar de seu gosto musical. Embora a cidade possua uma lei que reprime a poluição sonora, acima de 50 decibéis, Serginho é filho do Seu Nestor, o melhor amigo do prefeito. Policiais militares não querem incomodação. Afinal, quem reclama são os idosos. A maioria fica inerte e não se pronuncia. Lá pelas 20h, Serginho volta pra casa, larga suas ferramentas de trabalho, toma um banho, come alguma coisinha, briga com a mãe e sai pra balada de sábado à noite. Afinal, as moçoilas estão aí e não estão prosa...
Volta pelas seis da manhã no domingo. Cansado, extenuado de relações pessoais e intrapessoais, dirige-se ao leito gostoso, arrumado por Dona Chica, sua mãe. Dorme o sono dos justos mas não dorme direito (nem sempre o que é de justiça, é também de direito). Serginho tem sono leve, pobrezinho. O sino da igrejinha evangélica toca às nove horas da manhã. Pessoas simples, idosos, crianças e casais dirigem-se para seu interior. O sino chamou. Serginho, no entanto, não se sentira "chamado" pelo sino e sim, incomodado. O caso, claro, chegou à Câmara de Vereadores. Seu Nestor sofria ao ver o filho não conseguindo dormir por causa da poluição sonora. O decreto foi claro: o sino da igreja estava proibido de tocar. Incomodava. Culpa do sino. Não tocava sertanejo. O sertanejo é estimulador, o sino, bucólico. O sertanejo é romântico. O sino, gótico. Uso e desuso. Meu espírito saudosista pranteia, tocando bucolicamente, o som sineiro em meu coração.

Nenhum comentário:

Postar um comentário