9 de fev. de 2012

Armas & Força = Exercício de Poder.

Eu? Aquele ali, na fila bem atrás do senhor idoso. Qual senhor idoso? Aquele ali, com algo que se parece uma capa preta, surrada. Sua barba se projeta para além da costura. Deve ter uns quarenta e cinco anos no máximo. Difícil encontrar pessoas da idade dele. Já encontrei um senhor que viveu até os setenta anos. Só os poderosos vivem tanto. Sim, eu. Estou ali, tremendo de frio, esperando na fila impacientemente para pagar com o produto de um ano de plantio de trigo o tributo por ser mais um fraco num vilarejo sem proteção de nenhum senhor feudal. O questor é um homem de pele muito clara, cabelos loiros compridos, deve ter uns dois metros de altura e uma musculatura que eu nunca tinha visto em outro filho de Deus. Ele esbraveja, bate na mesa, exigindo que se pague tudo conforme dito na última vez que saquearam nossa aldeia. A voz dele ecoa pelo vale como se fossem muitos a falar. Se ele já mete medo por sua estatura, o que dirá gritando. Um homem acabou de ser açoitado porque o saco de farinha não correspondeu ao peso mínimo. Outro homem loiro, de menor porte, mas igualmente musculoso, faz a pesagem e não deixa passar uma arroba a menos. Em cima da mesa onde está o enorme nórdico questor, jaz um machado de dois gumes que, daqui, parece ter o meu tamanho. Enorme, pujante, que intimidaria até o maior cavaleiro de nosso Rei. Bem, está chegando a minha vez. Tenho vinte e sete anos. Sou um dos poucos que chegam a esta idade na minha vila. Meu irmão mais novo tinha dezoito quando morreu vítima de um coice de seu próprio cavalo. Não temos mais cavalos, os nórdicos vikings que agora exigem uma enorme porcentagem de nossa produção os levaram todos. Sobrou um potrinho doente que consegui esconder. Não sei até quando. Sempre fui assim, rebelde. Minha vontade era de enfrentar esses valentões. Não são muitos. Acho que uns quarenta, no máximo. Mas têm as melhores armas. Meu arco e minhas flechas mal servem para caçar cervos na floresta. Os deles atravessam facilmente uma armadura. Tenho uma adaga, afiadíssima. Já me livrei de várias situações de perigo, de ladrões a javalis enlouquecidos querendo defender sua cria da minha caçada. Minha adaga é comprida, quase do tamanho de um gládio, herança de meu avô, que ganhou do avô dele, que fazia parte das legiões romanas. Mas não sou páreo para aquele machado. Um casal acabou de ser decapitado por implorar perdão. Não tinham o que dar, perderam tudo na última chuva de granizo. O questor babava ira e contentamento ao ver sangue jorrar. Espetáculo horroroso, que sou obrigado a presenciar. Nada do que acontece aqui, é minha vontade, minha liberdade. Uma senhora, acho que uns trinta anos de idade, junto com sua filha de doze, mais ou menos, chega-se ao musculoso questor; este olha para as duas como se olhasse para um porco assado exalando o perfume do tempero que o cobre. As duas são dirigidas pelo outro a uma cabana logo acima deles. A menina com olhar apreensivo e a mulher, com olhar resignado. Já sei o que farão. O questor, muito à vontade, levanta-se, conversa demoradamente com mais dois subalternos que nos lançam um olhar agressivo, e entra na cabana. Ouvem-se coisas que temo em relatar. Trinta minutos depois, mais ou menos, sai o questor da cabana, com olhar sereno, contrastando com sua postura. Não se vê mais a moça e sua filha. Quase a minha vez. Que vontade de usar minha adaga. O idoso chama seu filho e mostra ao questor seu tributo. Não tenho tanto assim, não sou casado, não há mulheres na aldeia, levaram todas. Não tenho filhos, moro sozinho. Será que aceitarão meu pagamento? Sou o próximo. Demoram com o idoso, pois ele ainda presenteia os dominadores com as filhas do vizinho que ele mesmo matou, numa disputa de área de plantio, foi o que eu soube. Lá vão eles de novo para a cabana. E lá vou eu tremer mais de frio esperando para pagar uma coisa que não devo, mas por não ter força e armas suficientemente desenvolvidas para peitá-los, reduzo-me a insignificância de minha existência, no ano de 997, de Nosso Senhor. Acho até bom presenteá-los com minha adaga. Darei um jeito depois...
Um outro eu, um resquício genético daquele eu medieval, jaz numa cadeira dentro de uma agência bancária qualquer. Uma instituição pública, não privada. Chego com minha senha CC 0037 (CC = cliente comum) enquanto o display mostra a senha CP 054 (CP = cliente preferencial). Logo vem a senha de minha categoria inferior, a de comum e o número é 0022. Com dois caixas atendendo, a espera será longa. Acostumado e vacinado por anos de experiência, abstraio e começo a tecer crônicas, transformar o chronos em aión e deixar correr o tempo com meus devaneios literários. Ao retornar de tão lindo e perfeito universo, deparo-me com a realidade: o caixa que atende os relés CC's não está mais em seu posto. Conversa inadvertidamente com um provável colega. Riem, trocam mesuras. E eu, e mais outros pobres CC's esperamos, uma mistura de paciência resiliente com desagrado contido. Olhamos para o caixa relapso com olhar mais de inveja do que indignação, afinal, ele passou num concurso e é detentor de um machado (oops, confundi) de uma estabilidade no emprego, coisa que nós, CC's da rede privada, sequer sonhamos em conquistar. Nesse ínterim, uma pequena fila paralela de privilegiados entregadores de malotes se forma, dando ao cenário uma melancolia resultado da mistura de um Edgar Allan Poe com Kierkegaard. Não há o que fazer. Os maloteiros (que não são CC's e muito menos CP's) postam-se, altivos, imponentes, com seus malotes pujantes, enormes (será que confundi novamente?)serem atendidos, não pelo caixa que atende os majestosos CP's, mas o outro, que continua alegremente seu diálogo. Devem versar sobre coisas concernentes ao árduo trabalho de bancário. Duvido que conversem frivolidades em horário de serviço. O caixa que atende os CC's retorna ao seu nicho. Obviamente ele atende os maloteiros, e como se não bastasse, além de entregar malotes, eles também entregam mazelas...do cotidiano, e o que era para durar segundos, dura minutos, longos minutos. Uma senhora, aparentando minha idade, quarenta e sete anos, esbraveja para mim, como se eu tivesse uma adaga afiadíssima e caçasse cervos na floresta (aqui onde moro, floresta é nome de bairro e vila, cheio de outros bichos, mas nenhum cervo). Respondo a ela com um grunhido e este mesmo me leva a um insight: eu tenho uma arma! Um celular, e o meu algoz deixou uma brecha: o 0800 para reclamações, críticas e elogios. Por ironia, ao mesmo tempo em que digito o número, ligo e obedeço ao ritual de números a serem apertados para se falar com o atendente que irá criar um protocolo da reclamação, pedir todos meus dados, ouvir, digitar, ditar para ver se ele não esqueceu nada, uma moça vistosa, bem arrumada, achega-se da região onde ficam os caixas, e é atendida prontamente pelos únicos dois que atendem. Com certeza era uma estagiária nova, porque perguntava repetidas vezes a mesma coisa. De novo o olhar deles era o mesmo que há 1015 anos atrás o viking lançara para a mãe e a filha; mais um fragmento do mosaico funéreo e sarcástico do mundo pós moderno: CC's, CP's, maloteiros esperando para que a estagiária mate a fome de saber e eles matem a fome de...bem, deixa pra lá.
Volto ao telefone, e relato, in loco o que está acontecendo. Minha arma funcionou. Feri o sistema, não pessoas. Aviso a senhora ao meu lado de meu feito. Senti-me poderoso, pujante. Naquele momento, eu tinha o machado, eu tinha dois metros de altura e era forte, musculoso. Depois de exatos cinquenta e três minutos, sou atendido. Não dura mais do que dois minutos. Paguei o aluguel e o meu TOC de herança paterna fez com que eu separasse o dinheiro a fim de que o caixa, já cansado de tanto tro-lo-ló, não tivesse trabalho em contar as suadas cédulas de meu trabalho. Fui embora, deixando outros CC's atrás de mim, com a promessa que o gerente do banco ligaria para me dar uma explicação em até 5 dias úteis.
Na tarde daquele mesmo dia, reconheço a voz de quem me liga: era o mesmo rapaz que me deu a senha, reconheço o nome pois leio sempre crachás. É um bom passatempo ver os funcinários espantados quando tu os chama pelo nome. A explicação, além de um pedido formal de desculpas é a época, as férias de outros caixas, o horário que era de almoço, o sistema que não coopera, enfim... Minha arma não foi eficiente. Não fiz nenhum arranhão no sistema. Nem picada de mosquito. Saudade da adaga do meu ascendente. E, talvez, do machado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário