21 de nov. de 2011

Tragédia - Notícia = Estatística

Melissa é repórter. Matinal. Sua rotina laboral inicia mais ou menos no mesmo horário que muitos chegam da balada. Banho, maquiagem, café rápido, carro, emissora. Seu trabalho, após cinco anos de luta para conquistar um lugar ao sol no canal aberto de maior assistência no país, tornara-se mecânico. Ou cobria algum evento em uma cidade próxima à capital, ou anunciava algo novo. Por vezes, arriscava um palpite sobre o tempo. Reclamar disto? Nunca. Melissa chegara onde muitas sonhavam chegar.
Repórter é jornalista? Não. Repórter carrega o piano. É itinerante. Vai onde a notícia está. Tira da manga um questionário rápido de um fato inusitado ao qual foi chamada para reportar, gerar notícia. Repórter é a história, viva. Dos milhões de micro-eventos durante as vinte e quatro horas do dia, é o repórter quem imortaliza determinado evento. Mas, por ironia do destino amplamente planejado do mundo televisivo, não é Melissa quem escolhe qual evento ganhará a alcunha de imortal-salvo-em-hard disk. São os editores, redatores e chefes. Quais monges escolásticos, eles decidem o que é doutrina e o que é heresia.
A tragédia. Numa quinta-feira, Melissa acordara depois do horário. Balada? No meio da semana? Não. Melissa era centrada, e seu trabalho era tudo. Mas não era de ferro. Acordou de sobressalto, arrumou-se como pôde e saiu em desvario, a fim de não se atrasar. Esquecera os óculos, que formavam a imagem simpática da morena baixinha, bonitinha e nerd, elogiada por quase toda a rua (menos a Kátia, sua arqui-inimiga, que também sonhava em ser repórter). Dona Mância, sua avó, era um orgulho só. A neta era repórter. Mância fizera de tudo para que Melissa chegasse a este posto. Costurava, limpava casas, vendia potes de conserva. Pagou o curso de Melissa, viu-a se tornar mulher. E de sucesso. Por toda esta intensidade, Mância, a Mãe Mância, não iria deixar que sua neta querida perdesse a identidade. Quem não tinha nenhuma identidade era Regina, que aos quarenta e oito anos de idade, ainda chegava da balada. Errara com a filha. Não erraria com a neta.
No mesmo impulso de Melissa, Mância corre em direção ao ônibus para encontrar Melissa no trabalho e entregar o precioso óculos. Sobe no ônibus, agarra-se mal ao corrimão, e o motorista, apressado, arranca. Ela cai no asfalto, bate a cabeça. Desacordada. O cobrador foge, desesperado. Pessoas acorrem e chamam a polícia. Quinze minutos a polícia aparece e dois minutos depois, a ambulância. Tarde, muito tarde. Melissa dá-se conta que esquecera os óculos. Neste mesmo momento, sua chefe a chama para cobrir um acidente na zona norte. Uma senhora caíra do ônibus e morrera esperando socorro. O primeiro grande furo de reportagem de Melissa. Deixa o pensamento sobre o óculos de lado, e corre com o câmera man para o local. Chega arfando e vê um corpo do que parece uma senhora de idade coberta por uma lona. Policiais, perícia, trânsito caótico, fiscais de trânsito berrando apitos... Melissa vai na fonte: a polícia. Não dizem muita coisa. Com seu faro, vai à procura de elementos para criar a notícia. Aprendera sensibilidade e perspicácia com a avó, que era mãe ao mesmo tempo. Procurou documentos, algo importante... Olhou para a mão esquerda da mulher, que jazia para fora da lona: um óculos. Igual ao dela. Era o dela. Reconhecera pela marca que fizera por questão de segurança. Ela tinha um TOC conveniente, de marcar tudo o que era seu. Se o óculos era dela... aquele corpo deitado, envolto em sangue.. Mância. Mentora. Mãe. Era ela. Melissa engole o choro. Contém-se. Aprendera a arte da imparcialidade. Sem o óculos dá a melhor reportagem de sua vida. A gravação termina, ela cai ali mesmo, esvaída em choro copioso. A tragédia. Sua avó se fora. Ela era sua força, seu esteio.
A notícia. Melissa volta à emissora. Vai direto a uma tevê. Espera ver sua reportagem passando na telinha. Não era por questão profissional. A imparcialidade é diretamente proporcional ao distanciamento que temos com determinado evento. Chorando, espera ver-se reportando o acidente com a avó. Ninguém na emissora sabia que aquela, era dona Mância, que no horário de almoço, trazia doces para Melissa e seus colegas. Aquela notícia era sim, uma homenagem àquela que dera seu sangue para que Melissa chegasse onde chegou. E que no último momento de sua vida entregaria os óculos da neta. Mância seria imortal. Todos lembrariam-se dela e da fibra de uma neta que reportara o acidente da própria vó.
A estatistica. A reportagem não veio. Em lugar dela, o furo era de mais um político pego em flagrante ato de corrupção, desviando alguns poucos milhões do erário público e que, por questões de ética e amor à pátria, desviara bem menos do que poderia. Sobre isto, a emissora criara uma novelinha que durou o programa de notícias inteiro. Ao final do programa, o anúncio de um acidente trágico. Apenas anúncio, mais nada. Um político corrupto com noções de ética amoral era mais importante que sua avó. A última frase ecoou na cabeça de Melissa: "Com esta morte só neste ano são mais de 1200 mortes por atropelamento. Vinte por cento a mais do que no ano passado". Mância tornara-se um número estatístico. Mais um. Melissa, num momento de ira incontida, falara a chefe, com sorriso amarelo que, se sua avó tivesse se candidatado a vereadora, ganharia fácil. Seria notícia, não estatística.
O que são planos cartesianos? Localização de coordenadas. Todos aprendem isto no ensino médio. A matemática. Cálculo. A mecânica do cálculo. O que poucos se dão conta é que os pontos que constituirão os fatores de cálculo são escolhidos, e estas escolhas estão atreladas à forças múltiplas de intensidades variadas. Forças humanas, demasiadamente humanas... egóicas.

Esta crônica é uma homenagem a todas as tragédias pessoais que no final, viraram estatística.

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