13 de set. de 2010

Fogo

“O amor é fogo que arde sem consumir”. Camões. Quando amamos, apaixonadamente, entregamo-nos totalmente. Ficamos cegos. Nosso objeto de amor passa a resumir nossa vida. Uma gostosa prisão. Um porto seguro.
O amor não é em si um sentimento, mas um estado motivacional. Sendo assim, pode-se amar qualquer coisa, e com intensidades variadas. Um casal que ama seu cão. Gasta com ele mais do que gastaria com uma criança. Um homem que ama seu partido. Uma mulher que ama seu trabalho. Um menino que ama seu computador. Uma menina que ama sua máquina digital.
Até onde o amor e a entrega são socialmente saudáveis? Até que ponto nosso objeto de amor nos leva às loucuras razoáveis, aquelas que não incomodam ninguém?
Fanatismo. A conseqüência última do binarismo exacerbado do bem e do mal. Aquele maniqueísmo que se agregou ao pensamento ocidental através do catolicismo primitivo. Um olhar motivado pelo amor cego a um tipo específico de racionalidade que exclui toda e qualquer alternativa discordante. O velho culto ao absoluto.
Na minha infância, regada a jogos de futebol na calçada e “pegas” de bicicleta intermináveis, recebi uma educação moral considerada rígida, para os padrões educacionais modernos. Heranças judaico-cristãs tão fortes que minha adolescência teve como mote a quebra impulsiva de muitos valores. Mas, não foi a Torá nem o Novo Testamento que influenciaram meu pensamento ético. Um livro pequeno, do pseudônimo Malba Tahan, foi uma potência. “Lendas de Teijuã”. Um livro repleto de histórias das quais algumas até hoje sei praticamente de cor. Conto-as para minhas filhas sempre que a situação assim o exige. E são de ordem islâmica. Meu primeiro contato com uma forma de enxergar a vida diferente da que eu havia aprendido. Hoje ela é parte integrante do meu caráter e esteio nos períodos de resiliência que a vida nos impõe.
A religião, pelos padrões sociais, também é considerada produtora de pessoas de bem. Atualmente porém, isso habita no plano da estereotipia. A alcunha “reverendo” é quase mágica. No entanto, os paradigmas mundiais mudaram muito rapidamente para que essas pessoas de bem pudessem acompanhá-las.
E nesse 11 de setembro quiseram queimar o Corão nos EUA. O prato frio da “vingança”. Repúdio ao atentado, que tal como o Vietnã, permanece engasgado nas gargantas norte-americanas. Triste sim, tragédia. Um grande número de pessoas carregará para sempre o trauma da perda. O fanatismo. O amor exacerbado aos símbolos, aos virtuais. E ainda pior do que a violência física é a violência simbólica, subliminar. É ela a grande potência que alimenta o ódio e incita, mais violência física. Queimar um livro sagrado para milhões é transportar pessoas de bem ao plano do ódio. Ódio sim, aquela curva sinuosa depois da esquina do amor. O que diriam se Gandhi tivesse queimado a Bíblia? No início da guerra do Vietnã um monge budista queimou o próprio corpo em repúdio à guerra. Não houve queima de livros sagrados como espetáculos de mídia.
O fogo da paixão cega arde e clama por sacrifícios. Espero que homens de bem não levem isto muito a sério, e que amem intensamente… de olhos abertos e ouvidos críticos... Atentos. Queimar livros. Prática antiga, que só alimentou o fogo da vingança.